quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Sugestão de leitura:
http://isabelrosetevozes.blogspot.com/

Saudações poéticas,
IR

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Ensaio: "A ARTE COMO POESIA ESSENCIAL EM QUE UM POVO DIZ O SER E A QUESTÃO DALINGUAGEM", por Isabel Rosete


 « (...) Pois desde que a Poesia se libertou dos lábios
Mortais, exalando a paz, e o nosso canto,
Benfazejo na dor e na fortuna, alegrou
O coração dos homens, também nós,
Cantores do povo, gostamos de estar entre os viventes
Onde muitos se reúnem, alegres amigos de cada um,
Abertos a cada um; assim também
O nosso avô, o Deus do Sol, (...)»
Hölderlin




NOTA INTRODUTÓRIA

Heidegger é absolutamente peremptório quando afirma que a Arte é, por essência, Poesia, qual modo privilegiado do obrar humano, onde a Verdade acontece, se epifaniza, enquanto topos privilegiado do combate ocultante/des-velante do ser do ente.

Na sua essência repousam o artista e a obra de arte, pela qual a Verdade é posta em obra, ao mesmo tempo que nos transporta para o in-habitual, para além do dado na trivialidade da mostração quotidiana, comum dos homens que não nomeiam, como o Poeta, a originariedade do Ser.

A «verdade, observa Heidegger, como clareira e ocultação do ente, acontece na medida em que se poetiza. Toda a arte, enquanto deixar-se acontecer da adveniência da verdade do ente como tal, é na sua essência Poesia. A essência da arte, na qual repousam simultaneamente a obra de arte e o artista, é o pôr-em-obra-da-verdade. A partir da essência poetante da arte acontece que, no meio do ente, ele erige um espaço aberto, em cuja abertura tudo se mostra de um outro modo que não o habitual”. Ora, “(...) a poesia é aqui pensada num sentido tão vasto e, ao mesmo tempo, numa união essencial tão íntima com a linguagem e a palavra que tem de permanecer em aberto se a arte, e mais propriamente em todos os seus modos, desde a arquitectura à poesia, esgota a essência da poesia».

I. A INSTAURAÇÃO DA VERDADE COMO COMEÇO E A ARTE COMO POESIA

“Die hier waltende Fragwürdigkeit sammelt sich
dann an den eigentlichen Ort der Erörterung,
dorthin, wo das Wesen der Sprache und der
Dichtung gestreift werden, alles dies wiederum
nur im Hinblick auf die Zusammengehörigkeit
von Sein und Sage”
M. Heidegger

A Arte, na medida em que deixa advir, com a máxima fidelidade, a Verdade do ente é, por excelência, Dichtung, ou seja, Poema. Por Dichtung não se entende, em sentido próprio, a Poesia enquanto género literário, pois o Poema jamais é concebido como o resultado de uma “vagabundagem do espírito”, inventada a bel-prazer do seu autor, ou como um deixar fluir da imaginação até terminar numa espécie de irracionalidade.

Dichtung, enquanto verdadeiro Poema, é um projecto de iluminação na Abertura, na Lichtung, na Clareira do Ser, algures postada no seio dos densos e emaranhados caminhos da Floresta, naturalmente invisível para os olhos alienados do Homem Moderno, que a técnica minou; naturalmente inaudível para ou ouvidos ensurdecidos pelo ruídos das máquinas.

A essência do Poema só poderá ser inquirida, com um alcance suficientemente claro e evidente, se a desviarmos dessa qualidade da alma , coligida pelas emoções, pelas sensações, pela experiência-vivida (Erlebniz), que a afasta do seu núcleo originário de adveniência: o Ser, em si mesmo, na sua nudez; o Ser, ainda não-desvirtuado, ainda não-maculado pelos traços da modernidade; da Linguagem originária, das Palavras-de-Origem, da Língua da Tradição que o nomeia sem des-virtuamentos.

Aliás, “mesmo quando atingimos o inexprimível, este não existe senão na medida em que a significação (Bedeutsamkeit) da palavra nos conduz ao limite da Língua. Este limite é ainda, por si só, qualquer coisa que pertence à Língua e que abriga em si a relação do termo e da coisa”. A significação é ontológica. E a Linguagem é sempre a Linguagem do Ser, pelo que a Poesia só pode ser contetxtualizada por Heidegger no âmbito específico da ontologicidade da Linguagem, de que a Poesia é a obra suprema. A suposta existência do inefável, do indizível, não tem aqui lugar, porque a Linguagem só é Linguagem porque Diz, e o Dizer é a mostração da coisa que é, em si mesma, na Linguagem.

A reflexão do filósofo sobre a Linguagem não se fundamenta numa mera perspectivação da relação possivelmente patenteada entre a Linguagem e a Realidade, sobre a propriedade ou impropriedade daquela para descrever as coisas, nem tão-só numa mera análise sobre um "aspecto" do estar-aí (Da-sein) do Homem.

Trata-se de uma cogitação sobre a forma mais eminente do mostra-se da experiência e da expressão da própria Realidade. É na Linguagem que se dá a abertura do Mundo, que se dá o aparecer do Ser de todas as coisas e, por isso, o verdadeiro modo de perscrutação daquilo que se afirma como existente, que realmente é, só pode ser atingido através do auscultar do significado primordial das palavras.

As coisas não são fundamentalmente coisas presentes no mundo-exterior, mas na Palavra que as nomeia originariamente e as torna acessíveis, até mesmo na presença espacio-temporal. As coisas só são, no sentido do recolectante “fazer-morar", na Linguagem emergente como Poesia. É neste preciso sentido que devemos entender a tese que afirma ser, apenas, a Palavra que "torna coisa" (be-dinget), a coisa (Ding)”.

Para compreendermos este modo de ser da coisa na Palavra, devemos pôr em cena o gosto heideggeriano pela Etimologia, o meio privilegiado de remontar, através das vicissitudes e das conexões das Palavras, às dimensões autênticas, ontológicas, da coisa em si mesma nomeada.

A figura etimológica, a escavação da origem do significado dos significantes a partir das raízes verbais e da história das palavras é, na sua mais plena acepção, uma emergência, um des-ocultamento, um movimento-para-a-luz.

Qualquer investigação séria sobre o ente deve adoptar, como ponto de partida, as considerações linguísticas, em virtude da linguagem se apresentar como a chave que abre a porta do des-velamento do Ser, do Homem e do Mundo.

A palavra é um caminho (Weg), ou melhor, o caminho privilegiado que nos permite pensar, através do depoimento existencial que transmite, o Ser do ente, quer dizer, o Ser daquilo que realmente é, amiúde obnubilado no nosso discurso quotidiano, no seio do qual as palavras perderam o seu referente primordial, remetendo umas para as outras e não mais para o Ser.

Deparamo-nos, todos os dias, com discursos vazios de conteúdo. O modo de significação do que é, emaranha-se na sequência mais ou menos lógica, no encadeamento de um conjunto de fonemas mais ou menos articulados, mas que perderam de vista a sua veraz significação ontológica.

As coisas só são, realmente, enquanto se dão na proximidade do próprio Ser, tomado como aquilo que funda e abre toda a abertura histórica, embora ele-mesmo não se reduza a uma tal abertura.

Perspectivando à luz da tese heideggeriana as vivências quotidianas do "Homo Superfulus" – que habita cada vez mais em cada um de nós – não podemos deixar de afirmar, que a palavra e a linguagem jamais são invólucros onde as coisas podem ser empacotadas para o comércio daqueles que as utilizam. Não se podem consumir do mesmo modo que os triviais produtos que esta sociedade consumista nos apresenta e nos pressiona a angariar, sem que tenhamos a mais lúcida consciência disso, nos tão frequentados hipermercados, onde as palavras, os livros que as encerram, são comercializadas de modo similar e, quiçá, com o mesmo estatuto do quilo de arroz.

O pensamento ocidental esqueceu, desde há muito, a máxima essencial: é na linguagem, nas palavras, que as coisas nascem e são. Afirmar a existência, dizer que uma coisa é, significa falar do ser das coisas, como somente a Linguagem originária pode fazê-lo. Impõe-se-nos, como estritamente necessária, a refutação da tese que defende a existência de uma arbitrariedade entre o que se diz e o que é, entre o Dizer e o Ser, porque em cada sentença que proferimos o Ser é efectivamente nomeado.

Devemos recusar a tendência nominalista da sociedade contemporânea, particularmente registada depois do grande advento da Publicidade que tem feito crer ao comum dos mortais – vagueantes, com as suas mentes errantes por este universo de uma quase arbitrariedade semântica – que as coisas ou os objectos da experiência não têm realidade intrínseca fora da linguagem que as descreve e as faz falar.

A linguagem opera o des-velamento das significações do Mundo, não havendo, portanto, dois planos: o do percebido e o do conhecido; o do falado e o do expresso.

A palavra não introduz um sentido num conteúdo. É o conteúdo que se revela significante na linguagem. É forçoso, propõe-nos o filósofo da Floresta Negra, que destruamos a perspectiva metafísica: a linguagem não se torna significante a partir dos objectos compreendidos pelo pensamento e significados, em seguida, pelas palavras. São os objectos que adquirem a sua plena capacidade de significação a partir da linguagem falada.

O sentido do Discurso – definido por Heidegger em Sein und Zeit como sendo «a articulação significativa da compreensão do ser-no-mundo no sentimento de situação» – nunca é construído, mas sempre descoberto.

O mundo mostra-se-nos investido de significações utilitárias e poéticas. Daí que a linguagem seja entendida como uma leitura hermenêutica da experiência, assumindo uma vasta e originária significação ontológica, ao indicar a manifestação do carácter linguístico do Acontecimento do Ser.

O homem compreende sempre o Mundo no interior de um projecto interpretativo, cuja linguagem é a sua única justificação. Muito embora as coisas existam fora do gesto falado, o Mundo, esse horizonte inteligível que abre o acesso aos entes, só existe, em sentido autêntico, na e pela interpretação efectuada através da Linguagem.

Apenas onde há linguagem há Mundo, quer dizer, uma esfera em permanente transição de decisão e de obra, de acção e de responsabilidade, mas também de arbítrio e de con-fusão.

A análise existencial não é senão um estudo do homem no universo do Discurso. O Da-sein determina o modo como o próprio homem se interpreta como ente que fala. E falar equivale a fazer surgir o Ser do real: a linguagem é um modo do Ser, uma estrutura da Ek-sistência.

Porém, não é um existencial entre outros, mas o existencial fundamental no qual todos os outros ganham corpo. A linguagem não é somente uma possibilidade do Da-sein, mas uma determinação essencial do ser-homem, não obstante constituir, a um tempo, a sua grandeza e a sua miséria.

O Discurso do Mundo é, inextrincavelmente, uma palavra do Ser. E a Ek-sistência é o discurso que reflecte esta linguagem fundamental: «a linguagem é a casa do ser», na qual o homem habita e, deste modo, ek-siste, pertencendo à verdade do Ser que ele próprio vigia.

Em Unterwegs zur Sprache (Caminhos da Linguagem), Heidegger afasta toda a falsa interpretação desta metáfora que, aliás, é muito mais do que uma simples metáfora: uma casa recolhe passivamente aqueles que abriga, enquanto a Linguagem tem o poder efectivo de trazer à luz, de des-velar a essência do Ser e o ser do Homem.

A importância crucial conferida pelo filósofo à linguagem, na citada passagem de Briefe Über den Humanismus (Carta sobre o Humanismo), resulta justamente da firme convicção segundo a qual a Linguagem é própria do homem, não apenas porque, para além de todas as suas outras faculdades, o homem também tem a genial capacidade de falar, de comunicar inteligivelmente através das palavras mas, sobretudo, porque apenas por intermédio desta irredutível via, tem acesso privilegiado ao Ser.

II. LINGUAGEM E ACONTECIMENTO DO SER

«Por isso (...) foi dado ao homem a língua, o mais perigoso dos bens (...) para que ele dê testemunho do que ele é (...)».
Hölderlin

A função da Linguagem é deixar que o Ser seja. Jamais poderemos obnubilar que não é mais o homem que determina o Ser, mas o Ser que, através da Linguagem, se revela ao homem e o determina.

Face à significação atribuída a este modo específico de re-velação, o homem surge-nos tão-só como o portador da Linguagem. A Linguagem não radica propriamente na essência do homem. Manifesta uma essência histórico-ontológica fundamental, sendo segundo esta essência que ela é dita como a "Casa do Ser". Cabe ao homem a função exclusiva de mostrar o Ser por seu intermédio.

Revelando esse extraordinário poder de manifestar a originariedade e primacialidade da Existência, de fazer advir o Ser à luz, de o des-ocultar, de o colocar na não-latência e com ele a essência do homem, a Linguagem afigura-se como a única morada onde o Ser pode ser realmente acolhido e, posteriormente, mostrado na sua nudez primordial.

A Linguagem do Ser suporta a nossa linguagem de todos os dias: o Ser é o não-dito e o não-falado de que se alimenta a nossa palavra. O encontro com o para além das palavras é possível porque o Ser, essa Alma da Linguagem, é o lugar da nossa permanência.

A Linguagem, que nos faz comunicar com o Mundo e com os outros homens, exprime sempre algo de diferente do que se diz. Exprime sempre as relações ocultas que as palavras mantêm com o Ser, ou seja, com aquilo que em si mesmo é e não necessita de nada para que seja.

A Linguagem é um acontecimento (Ereignis) que, ao manifestar-se, produz a indicação e a língua. A palavra é a marca do acontecimento interior à Linguagem. E a escrita o depósito da Tradição do Ser.

Ao interrogar-se o Ser, a Linguagem arranca constantemente a palavra ao peso significativo da tradição, e a escrita aos limites do signo, para a fazer regressar à presença originária que permitiu a sua manifestação. A Linguagem reside na diferença interior à palavra do Ser que se inscreve entre o acontecimento, o qual, ao mesmo tempo, desvela e oculta a letra ou a palavra que morre no limiar da coisa.

A ideia de uma linguagem transparente ao espírito é, seguramente, uma ilusão de representação. Há sempre para além da própria palavra, uma palavra essencial que o coloca na presença, mas que não pode ser captada como palavra, porque o acontecimento do Ser é a sua marca concomitantemente oculta e des-velada.

Se em Sein und Zeit (Ser e Tempo) a Linguagem já ocupava uma posição peculiar – na medida em que, como signo, revelava a própria estrutura ontológica da mundaneidade – em obras posteriores, como Der Ursprung des Kunstwerkes (A Origem da Obra de Arte) e Hölderlin und das Wesen der Dichtung (Hölderlin e a Essência da Poesia), mostra-se ao filósofo, nesse caminho de des-construção da concepção vulgar de Linguagem (tão-só um meio de comunicação), como o modo próprio do abrir-se na abertura do Ser, enquanto é pensada como Poesia, a Arte originária da palavra: «Segundo a concepção corrente, a linguagem surge como uma forma de comunicação. Serve para a conversação e para a concertação em geral, para o entendimento. A linguagem não é apenas – e não é em primeiro lugar – uma expressão oral e escrita do que importa comunicar. Não transporta apenas em palavras e frases o patente e o latente visado como tal, mas a linguagem é o que primeiro trás ao aberto o ente enquanto ente. Onde nenhuma linguagem advém, como no ser da pedra, da planta e do animal, também aí não há abertura alguma do ente e, consequentemente, também nenhuma abertura de não ente e do vazio.»

É neste sentido que a Linguagem é, para Heidegger, “Poesia em sentido essencial”: «porque a linguagem é o acontecimento em que, para o homem, o ente como ente se abre. A Poesia em sentido estrito, é a poesia mais original, no sentido essencial. A linguagem não é, por isso, Poesia, por ser a poesia primordial (Urpoesie), mas a Poesia acontece na linguagem, porque esta guarda a essência original da Poesia.»

III. A LINGUAGEM COMO POESIA ESSENCIAL

«Gerado no teu seio
O divino menino e em volta dele
O filho da amiga, chamado João
Pelo pai mudo, o audaz
A quem foi dado
O poder da língua,
Para interpretar (...)»
Hölderlin

Posto que a abertura do Mundo se dá, sobretudo, na Linguagem, é nela que se pode perscrutar a autêntica inovação ontológica. A «linguagem é poesia no sentido essencial» , ou como Heidegger refere, em Einführung in die Metaphysik (Introdução à Metafísica) , «a linguagem é poesia originária (Ur-dichtung) em que um povo diz o Ser» e, inversamente, a Grande Poesia, pela qual um povo entra na sua História, inicia a configuração da Linguagem.

Dizer que a Linguagem é Poesia, apenas no sentido essencial, significa afirmar que o falar autêntico é criação, abertura e inovação ontológica. Nem todo o falar é criação, já que comummente se torna um mero instrumento de comunicação que se limita a articular e a desenvolver, a partir do seu próprio interior, a abertura já aberta.

Na linguagem essencial instituem-se os mundos históricos em que o estar-aí e o ente se relacionam entre si nos vários modos de presença humana no Mundo, o que faz da linguagem, tomada na sua dimensão poética, «o fundo que rege a História do homem», porque, afinal, «o que perdura fundam no os poetas».

Fundar o que permanece, ou fundar o permanecente, significa des-velar o Ser para que o ente apareça, só pelos poetas alcançado, os únicos capazes de nomear os Deuses e todas as coisas, naquilo que em si mesmas são.

O nomear do poeta não consiste em atribuir um nome a uma coisa anteriormente conhecida. Falando, o poeta celebra a palavra essencial e, celebrando-a, o ente passa a ser nomeado no que é. Através desta nomeação, torna-se conhecido enquanto é, pois a poesia é, na sua essência, a "fundação do Ser pela palavra" e esta fundação é doação livre.

Quando os Deuses são nomeados originariamente pelo poeta e a essência das coisas se torna palavra, a própria existência humana é inserida num contexto firme e é colocada sobre o terreno desta fundação.

A Poesia é, radicalmente falando, não um fenómeno da Cultura ou a expressão de uma "alma natural", mas a obra suprema da Linguagem, dada como projecto de iluminação na abertura, na clareira (Lichtung) do Ser.

O dizer do poeta é este mesmo projecto de iluminação onde é dito como o ente chega à abertura. Este dizer que é, em si mesmo, poema, nomeia o Mundo e a Terra, assim como o espaço de jogo do seu combate. Cada língua é o surgimento do dizer no qual, para um povo, se abre historicamente o seu Mundo e onde é salvaguardada a veracidade da Terra, no seu oferecimento primordial.

A poesia é – onde a língua manifesta a sua essência, que é o dizer do Ser de todos os entes – essencialmente Pensamento. Pensamento não significa aqui  (Théoria), determinação do conhecer como atitude teórica, ou  (Técnica), tomada no sentido da reflexão ao serviço do fazer e do produzir, ou  (Práxis), mas aquilo que pertence (gehören) e escuta (horen) o Ser. «Numa palavra, o pensamento é o pensamento do Ser» .

A Poesia é uma forma de Pensamento e este, por seu turno, é por essência, poetizar (dichten). É difícil distinguir, segundo este modo de perspectivação, a Linguagem autêntica, o Pensamento e a Dichtung. Em última análise, e não obstante as diferenças conceptuais que possam evidenciar, estes conceitos acabam por se tornar homólogos, homologia esta que é estabelecida por uma comunidade essencial: das Sein, o Ser.


IV. A INSTAURAÇÃO POÉTICA DO SER E DA VERDADE PELA POESIA


«Muito aprendeu o homem. Dos Celestiais muito nomeou,
Desde que somos um Diálogo
E podemos ouvir uns dos outros»
Hölderlin


Dispondo desse poderoso “instrumento” de des-velamento – a Linguagem – a Poesia afigura-se como sendo uma forma de  (alêtheia), tal como todas as formas da arte se dar. Em vez de banirmos os Poetas da cidade, como havia pretendido Platão, urge requerê-los. Os Poetas são, para Heidegger, os únicos entes que privilegiadamente dispõem da genial capacidade de instaurar uma ordem durável, ao nomearem as coisas que permanecem inacessíveis ao vulgo.

Dizendo o que é o ente na radicalidade do seu Ser, a Poesia instaura-o; e tal instauração possui o carácter de ser um dom fundante e inicial, rebatendo toda a familiaridade da aparência.

Fundando poeticamente tudo o que é, o homem funda-se a si mesmo. Compreendemos, assim, porque é que o Das-ein é poético (dichtrich) e em que sentido é dito que «de um modo poético habita o homem sobre esta Terra». Habitar poeticamente significa: estar na presença dos Deuses e ser tocado pela proximidade das coisas.

O fundamento do "ser-aí" (Da-sein) humano é, pois, poético, como o próprio acontecer da Linguagem primordial, que é Poesia como fundação do Ser. Se compreendermos esta essência da Poesia – dada como Linguagem primordial de um povo historicamente concebido pela qual diz o seu ser – percebemos, ao mesmo tempo, que a essencialidade da Linguagem tem que ser compreendida a partir da essência da Poesia, tal como a essência da Poesia é compreendida a partir da essência da Linguagem.

A Linguagem não é apenas criação e inovação ontológica, como já se havia referido, mas, sobretudo, a sede, o lugar do acontecimento do Ser, como o abrir-se das aberturas históricas em que o Da-sein está lançado.

É a linguagem que "rege o nosso estar-aí" e, por esta razão, dependemos dela de um modo umbilicalmente profundo: «a linguagem não é mais um instrumento disponível para o homem, mas aquele acontecimento que dispõe da maior possibilidade de ser homem». Enquanto tal, apropria-se de nós, na medida em que, com as suas estruturas, delimita, desde o início, o campo da nossa possível experiência do Mundo.

Só na Linguagem as coisas nos podem aparecer, e só no modo como ela as faz aparecer. É a palavra que proporciona o Ser da coisa. Todo o falar concreto, autêntico, pressupõe que a Linguagem já tenha aberto o Mundo e que também, a nós, nos tenha colocado nele.

Toda a problematização sobre a Linguagem e, em rigor, todo o seu uso ôntico, requerer que ela já nos tenha falado. A Linguagem é mais do que uma faculdade de que dispomos. É um "dirigir-se a nós", sem o qual não poderíamos falar.

Se isto significa, para Heidegger, que todo o falar autêntico é fundamentalmente uma escrita, não quer dizer, no entanto, que o homem seja um ouvinte passivo. A Linguagem não é, acidentalmente, um "dirigir-se a nós". É nesse "dirigir-se a nós", que somos os seus ouvintes e respondedores privilegiados, que consiste a sua própria essência.

A linguagem, afirma o filósofo em Sein und Zeit (Ser e Tempo) , «tem necessidade da fala humana, embora não seja um produto da nossa actividade linguística». É anúncio, apelo, mensagem, e nós, homens, somos por ela usados como ”mensageiros da voz do Ser".

A Linguagem não se dá senão no falar do Da-sein. Este falar encontra já delimitadas as suas possibilidades e os seus contornos na própria Linguagem, ainda que não como uma estrutura rígida que o obrigue, mas como um apelo a que responde.

É neste sentido que devemos entender porque é que Heidegger retoma do ”poeta do poeta", o romântico Hölderlin, a caracterização do homem como Diálogo, porque é que o ser do homem se funda na Linguagem e, ainda, porque é que só acontece verdadeiramente no Diálogo.

A Linguagem não é, portanto, um mero instrumento ou um meio de comunicação, mas a expressão representativa da veracidade do que é comunicado, sempre numa relação com a alteridade: «A linguagem é a casa do Ser (Die Sprache ist das Hause des Seins), sendo por excelência os pensadores (die Denkenden) e os Poetas (das Dichtenden) os guardas (der Wacheter) desta habitação (dieser Behausung)» , embora os poetas se apresentem numa relação de primazia para com os pensadores, uma vez que a «poesia penetra toda a arte, todo o acto pelo qual o ser essencial (das Wesende) é desvelado no Belo» .

Significará esta afirmação que a Arquitectura (Bauen) e as Artes Plásticas (Bilden) devem ser necessariamente fundadas sobre a Dichtung? Serão todas as Artes meras variantes da arte da palavra?

Temos de nos desviar deste impasse bizarro. A Poesia é apenas um modo, entre outros, do projecto de iluminação do Ser. Todavia, sendo a sua essência a Linguagem, a Arquitectura e as Artes Plásticas só são possíveis, só advêm verdadeiramente, por meio da abertura operada pelo dizer e pelo nomear. Só assim podem ser efectivamente guiadas. Todas as artes são, cada uma a seu modo, Dichtung, Poesia, no interior da clareira do Ser, advindo em obra.

A Poesia é pensada por Heidegger a partir da  (Poiesis), ou seja, como um dos modos de manifestação do Ser. A essência da Poesia, apreendida a partir da experiência grega do pensar, brota do Ser, como do seu fundamento original.

A questão da essência do poético, bem como a da Arte, não pode ser pensada senão a partir da “Questão do Ser”. Quando o Ser não é mais compreendido no horizonte do tempo, a historicidade poética manifesta-se como o domínio próprio onde a sua Verdade é colocada em obra.

Longe de exprimir simplesmente uma Cultura, a Poesia torna possível toda a Cultura. Por conseguinte, se a Arte é na sua essência Dichtung, a essência da Dichtung é precisamente a instauração da Verdade.

Isabel Rosete
A QUESTÃO DA ARTE COMO QUESTÃO DO SER
Por: Isabel Rosete

«A criação artística autêntica é ela própria a
epifania do mundo por ela iluminado e nela guardado .
Heidegger

«A poesia penetra toda a arte, todo o acto pelo qual o ser essencial (das Wesende) é desvelado no Belo» .
Heidegger

Numa conferência intitulada Vom Ursprung des Kunstwerkes (in Holzweg), é nos apresentado de um modo claro e decisivo, não obstante toda a circularidade de certas afirmações e inferências que se sucedem ao longo do texto, a problemática da arte, ou mais propriamente, da obra de arte e da sua origem, numa relação estreita com a verdade (Wahrheit -•) e sob um pano de fundo eminentemente ontológico, o qual perpassa e aglutina todos os domínios onde quer que se posicione o mais fecundo pensamento do autor de Sein und Zeit.

O texto em análise move-se, sem o dizer expressamente, sobre o caminho da questão da essência do Ser. Contudo, torna-se manifestamente evidente para um leitor atento e conhecedor dos trâmites do pensar heideggeriano, que por detrás da pergunta que questiona sobre a origem da obra de arte, se pode visionar a questão fundamental que percorre obsessivamente esse pensar: “die Seinsfrage”.

A Arte, aqui, não é mais concebida como um domínio especial da realização cultural, ou como uma das manifestações superiores do espírito humano. Ao invés, e ao manifestar o seu profundo enraizamento ontológico, emerge como um dos modos de des-velamento e revelação do Ser, como um meio privilegiado através do qual o Ser se dá a conhecer na sua nudez originária. Todavia, o que é a Arte é uma das questões à qual o texto jamais responde. Permanecemos sempre na mais perfeita aporia, pois a Arte surge, antes de mais, como um enigma . Não obstante e como nos é indicado pelo título desta conferência, pretende-se perscrutar qual a origem da obra de arte, quer dizer, discernir a essência da arte enquanto tal: a questão da origem da obra de arte coloca aquela da proveniência essencial, uma vez que é estabelecido que a origem não é senão o emergir da essência .

O afrontamento desta problemática indica-nos que, no entanto, deveremos prescindir, nas nossas abordagens sobre esta matéria, da concepção metafísica da Arte que tomou, no seio do Pensamento Ocidental, o nome de Estética, antes de mais, porque a Estética considera o obra de arte como um simples objecto da percepção sensível, como um objecto da , isto é, toma a obra a priori e definitivamente como um objecto disponivelmente dado. Ao colocar a questão deste modo, a Estética parte, segundo a perspectiva heideggeriana, não mais da obra, mas do sujeito que exerce o seu olhar sobre o que lhe é sensivelmente dado, e sobre o qual deverá exercer um juízo estético ou, por outras palavras, desenvolver um acto contemplativo. Questionar a partir do sujeito significa não deixar a obra ser obra, mas representá-la como uma coisa susceptível de provocar em cada um quaisquer estados de alma.

Esta percepção sensível, que Heidegger rejeita incessantemente por não se enquadrar no seu esquema que postula a passividade do sujeito contemplativo, é denominada pelo termo Erlebens, que significa experiência vivida, a partir da qual a Estética tradicional pretendia dar a conhecer a essência da arte. Todavia, jamais o modo como a Arte é vivida pelo homem pode produzir o esclarecimento da sua essência. Considerando-se que a experiência-vivida é o princípio de autoridade não somente para a fruição estética, mas igualmente para todo o acto de criação enquanto tal, reduzindo-se, assim, toda a actividade artística à Erlebnis, mergulhamos numa vivência ilusória, não nos apercebendo que é a experiência-vivida o elemento no seio do qual a arte é lançada na sua própria agonia. E eis-nos chegados ao postulado da destrutividade de toda e qualquer atitude estética possível.

Torna-se, de certo modo indubitável, que numa teoria da arte cuja base fundante assenta primacialmente na ontologia, jamais tem lugar a concepção que visiona a obra de arte como algo que é dado por intermédio dos possíveis estádios psicológicos do sujeito, tais como, os sentimentos, os gostos ou a sensibilidade. Mas, não será esta a autêntica e legítima teoria da arte? A única que confere ao artista a sua dignidade essencial?

Uma vez que a instauração da estética psicológica faz brotar a morte da grande arte, a única que Heidegger é capaz de conceber e consagrar verdadeiramente em toda a sua obra, afigura-se como absolutamente necessário fazer regressar a arte ao seu sentido absoluto e primacial que se relaciona à verdade mais do que à beleza, institui-la essencialmente como saber (Wissen) e não mais como algo que pertence à esfera do que excita a sensibilidade humana.

Viabilizar tal intenção, que não é mais do que o pressuposto fundamental da tese heideggeriana, consiste em fazer voltar a obra e o artista à sua origem – a arte – procurar a essência desta na verdade e não em qualquer produção que se oponha à natureza entendida a partir da palavra grega original, quer dizer, enquanto .

Esta perscrutação, que faz nascer o primeiro problema deste itinerário, faz mergulhar o autor na mais perfeita ciclicidade do seu pensamento: a obra surge pela actividade do artista, mas, por sua vez, o artista só é verdadeiramente o que é pela obra, pois a “origem da obra de arte é o artista” e “a origem do artista é a obra de arte” . Para desenredar uma tal ciclicidade, que embora intencional parece conduzir todo o acto pensante a uma interminável aporia, é necessário encontrar um terceiro elemento (o princípio lógico do 3º excluído é aqui manifestamente abandonado), um outro caminho possível que abra a clareira na labirinticidade da floresta. Essa busca indica-nos que o terceiro elemento é a Arte, que se manifesta como fundante ao emergir como a origem da obra e do artista, como o sustentáculo que permite ao artista ser o que ele é e faz emergir a obra como obra de arte e não tão só como simples obra.

Nesta perspectiva a arte é tomada como instância que existe por si mesma, independentemente da existência da obra e do artista, quer dizer, como um elemento originariamente fundante. É preciso notar, com efeito, que esta visão não nos permite conceber a Arte como um produto imagetico, mas, ao invés, como algo que existe “aí” no Mundo, a partir do qual a obra e o artista se tornam efectivamente o que são. Se assim é, como poderemos, então, conciliar esta tese com aquela que considera a arte como uma mera palavra, que não corresponde a nada de real?

A resposta a este segundo problema diz-nos que a arte não é mais do que uma “ideia de conjunto”, afirma Heidegger, na qual identificamos o que nela podemos considerar de real, a saber, as obras e os artistas . Perante a instalação reiterada da aporia de um pensamento que parece rodopiar sempre em torno de si próprio e que nos conduz ao terceiro problema que esta análise apresenta, resta-nos perguntar: Como considerar reais as obras e os artistas, uma vez que é destituída a concepção da arte enquanto algo de real? Esta tese, assim perspectivada na sua linearidade, afigura-se efectivamente incompreensível e sem resposta adequada.

Não obstante o impasse a que chegámos, torna-se manifesto que só podemos ter obras e artistas na medida em que a arte existe como sua origem – falar de obras de arte e de artistas sem postularmos a arte como existente seria, do ponto de vista lógico e ontológico, absurdamente inconcebível. Quaisquer que sejam as questões ou as respostas sobre a eventual ou aparente vacuidade do percurso traçado pelo pensar heideggeriano, a questão da Ursprung des Kunstwerkes é sempre e inevitavelmente a questão da essência da arte que ronda de um modo incisivo a questão do Ser.

A questão da origem da obra de arte transmuta-se para a interrogação pela essência da Arte. O discernimento dessa essência produz, contudo, a mesma ciclicidade do pensamento anterior: só as obras de arte reais nos podem dar a conhecer o que é a Arte. Mas, para tal devemos saber o que é a arte em si mesma, de molde a podermos reconhecer ou verificar se tal ou tal obra pode ser verdadeira e autenticamente considerada como arte; para que possamos distinguir com alguma segurança o que pertence e não pertence ao domínio estrito da Arte, se é que realmente esse domínio existe de forma autonomamente diferenciada.

Esta auscultação conduz-nos a um segundo impasse: o que é a arte só o poderemos saber enquanto contemplarmos comparativamente as diferentes obras; e o que é a obra só o reconhecemos pela compreensão da essência da rate, a qual, por sua vez, deve ser procurada na obra real, a partir da interrogação pelo seu ser . Longe de procurar evitar o círculo, Heidegger instala-se nele de um modo quase definitivo. O movimento cíclico da obra à arte e desta à obra, apresenta-se como a marcha efectuada por um “caminho que não conduz a parte nenhuma”. O que devemos, então, entender por obra de arte? Será que continua a ter sentido perguntar o que é a arte?

Se interrogarmos, pela outra vez, as estéticas da Erlebens, verificamos que a obra é puramente dada na sua existência material, o que quer dizer que ela é tomada como uma simples coisa (Ding), onde a apologia do material é lançada em primeiro plano. Perante uma tal coisificação da obra, a experiência estética jamais pode negligenciar que no quadro existe a cor, que na poesia existe a palavra, que na música existe o som e que o monumento é feito de pedra: o monumento nada mais é para além da pedra, o música reduz-se ao som e o quadro apenas à cor. Esta perspectiva que toma a obra pela sua materialidade é, para Heidegger, redutora, em virtude de não permitir alcançar a essência do “ser-obra” da obra.

Fazendo-se ressaltar a matéria como o elemento fundante da obra, somente é possível visionara a sua verdadeira realidade através do seu “lado-coisa”, ou seja, a partir do momento em que perguntamos pela coisidade da obra, entendendo-se por coisidade, não o “ser-obra”, significação que o conceito deveria radicalmente tomar, mas algo enraizado numa matéria, concepção que não pertence à originariedade da obra enquanto tal.

Esta visionação estética “coisificante” permite-nos a possibilidade de interpretar o termo “coisa” (Ding) a partir de três direcções determinadas, a saber:

1 - A coisa como o suporte ( ) de prioridades e qualidades ( ) distintivamente marcantes que fazem com que ela seja este ente determinado e inconfundível. Segundo esta primeira interpretação, a obra de arte não é senão o a-juntamento de qualidades específicas.

2 - A coisa é definida como sendo a unidade de uma multiplicidade de sensações. Neste sentido, a obra assume o qualificativo de , que significa o que é perceptível pela sensibilidade, sendo por intermédio dos órgãos dos sentidos que ela se apresenta como presença (Anwesen).

3 - A coisa reduz-se a uma matéria informada, o que quer dizer que toda e qualquer obra brota como a pura síntese da matéria () e da forma (). O “lado-coisa” da obra é manifestamente a matéria de que é composta, a qual se destinada a ser informada pela mão humana. A matéria é o suporte da acção e da criação artística. E a obra de arte não é senão, à luz desta conceptualização, uma matéria informada, disposta à deleitação sensível do espectador. O artista, por sua vez, é o mero enformador da matéria bruta, consistindo a criação no simples acto de dar forma.

Jamais o complexo matéria-forma, que tem fundamentado toda a Estética Ocidente tão amplamente criticada por Heidegger, faz ressaltar a originariedade da arte que a obra em si mesma encerra. Aliás,  e  no são determinações inerentes à essência da obra de arte enquanto tal. Se entendermos por  aquilo que dá contorno, que delimitando faz emergir o rosto () numa matéria, verificamos que a forma determina a qualidade e a coisa dessa matéria, o que quer dizer que a ligação entre estes dois elementos visa um determinado fim (), delimitando-se esse  à utilidade (Dienlichkeit) do objecto.

O complexo matéria-forma faz-nos mergulhar no campo da pura tecnicidade, do “instrumentum” ( Einrichtung), sendo o ente submetido a um tal complexo não o produto de uma criação, mas de uma fabricação. Demonstra-se, assim, como a dupla matéria-forma, tem a sua origem na essência do útil, entendido como aquilo que é utilizado em visita de um determinado fim, e no mais na obra, enquanto obra de arte. Será que a obra de arte se apresenta, na sua radical essencialidade, como um simples produto de uma qualquer fabricação? Reduzir-se-á a obra de arte a um objecto cujas características são a utilidade e o uso? Para compreendermos o alcance destas questões é preciso distinguirmos, antes de mais, três tipos de entes: a coisa (Ding), o útil (Zeug) e a obra (Werk).

O ente enquanto Werk deve ser entendido como distinto dos outros dois tipos de entes, embora manifeste um certo parentesco com eles. É evidente que a obra também é um produto, na medida em que, tal como o útil, é o resultado de uma operação efectuada pela mão humana. Porém, é necessário salientarmos que não estamos a referirmo-nos, em ambos os casos, ao mesmo tipo ou conceito de produção. A produção do útil reduz-se à simples fabricação entendida em sentido meramente tecnicista. Ao invés, a pro-dução (Hervor-bringen) da obra de arte é entendida como criação, significando criar, trazer à luz o que ainda não se encontra em estado de presença (Anwesen).

A criação jamais é dada como uma actividade artesanal: o artista não é o artesão, embora os gregos tenham utilizado o termo  quer quando se referiam aos artistas, quer quando se referiam aos artesões, atribuindo-lhes uniforme e indistintamente o qualificativo de , parecendo, assim, determinarem a essência da criação a partir do lado artesanal-manual da obra. De notar que , não significa nem trabalho manual nem trabalho artístico, nem sobretudo, trabalho técnico, no sentido, modernamente atribuído à expressão, mas essencialmente Saber. Por Saber entende-se, “ a visão primeira e constante para além do subsistente” e, mais radicalmente, “ dispor em obra o ser como ente que seja sempre tal ou tal” .Saber significa: fazer ver o que é, apreender a presença daquilo que se apresenta. A essência do Saber repousa na , ou seja, na eclosão do ente.

A  é um modo de , ao permitir o des-velamento do que não se produz por si mesmo; des-oculta o que ainda não é dada a descoberto perante nós. E é precisamente como des-velamento e não como fabricação, que  é uma pro-dução (Hervor-bringen). A produção assim apresentada é, radicalmente, , que significa fazer abrir a floração, promover o desabrochar (Aufgehen) do ente na sua nudez primacial. Segundo esta perspectiva o “criador” é o , quer dizer, aquele que faz emergir a verdade, definindo-se a “criação”, por sua vez, como um acto de verdade, e não mais o , aquele que fabrica produtos.

Enquanto dada como algo que se basta a si mesma, a obra assemelha-se à simples coisa, repousando plenamente numa espécie de gratuitidade que a sua acção de brotar natural lhe confere. Apesar disso, não nos é permitido qualificar as obras de arte entre as simples coisas. E eis-nos chegados a uma primeira conclusão do que a obra não é: a obra de arte não pertence ao domínio da simples coisa, entendida segundo os moldes de interpretação precedentemente discriminados, nem ao produto, compreendido como o resultado de uma fabricação.

É para a explicitação de uma tal problemática que nos induz um dos quadros de Van Gogh, onde podemos observar um par de sapatos de camponês. Ao contemplarmos este quadro, podemos efectivamente objectar, que nada existe para ver, para além daquilo que é realmente dado, em virtude de cada um saber o que é um par de sapatos de camponês. Á volta deste par de sapatos não existe rigorosamente nada a não ser um espaço vazio, em virtude de não encontrarmos nenhum elemento do seu uso ou da sua utilidade. Em face de uma tal constatação, pelo menos uma questão surge imediatamente ao nosso espírito: porque razão devemos contemplar uma obra de arte com o objectivo de nela encontrarmos manifestamente expresso a utilidade de tal ou tal produto assim representado? Colocar uma tal questão perante uma obra de arte, seja ela uma pintura, uma escultura ou uma partitura musical, é pura e simplesmente adulterar não somente a obra enquanto obra, mas toda e qualquer atitude estética possível.

Heidegger situa-se, obviamente, num campo totalmente diferente, vendo naquilo que a obra representa a essência do representado. Somente na obra podemos perscrutar em que reside a essência do útil de um tal ente. A utilidade assim representada supõe, por um lado, a pertença secreta a um Mundo e, por outro, a aliança originária que permite escutar o apelo silencioso da Terra, entendida no seu sentido mais originário, quer dizer, enquanto . Este Mundo campónio do trabalho, esta pertença à Terra – que o filósofo descreve com um lirismo assaz curioso – constitui precisamente verdade do útil, a qual apenas o quadro de Van Gogh, obra da consagrada “grande Arte” (große Kunst), pode efectivamente mostrar. Só ela faz “saber o que é em verdade, um par de sapatos” . Representando um produto a obra de arte tem esse poder privilegiado de fazer desabrochar a veracidade originariamente pertencente ao seu próprio ser.

Daqui não nos é permitido inferir que a obra de arte consista simplesmente na ilustração do que é um produto. Muito pelo contrário, é o ser-produto do produto que advém à luz na obra. A obra é a abertura que deixa emergir o que é o produto na sua verdade. Nela o ente faz a aparição na eclosão do seu ser, ou seja, na sua verdade. Aqui reside a essência da arte: o “ dispor-se em obra da verdade do ente” (Sich-in-Werk-setzen der Wahrheit des Seienden) . Esta definição deve ser pensada a partir do sentido originário do termo grego , que significa acção de colocar, de obrar e, mais radicalmente, “instalação na abertura” . Setzen assume, por um lado, a significação de Feststellen, quer dizer, de construir, de deixar surgir ou fazer emergir a obra, de pro-duzir (Hervor-bringen). O dispor em obra da verdade no é senão o acto de criação da própria obra enquanto obra.

Por outro lado, Setzen toma o sentido de “instituir” que é equivalente à expressão “Zum stehen bringen”: situar em constância. Isto quer dizer que um determinado ente é trazido pela obra á instância (Dastehen) na nítida transparência (das Lichte) do seu próprio ser. O termo “instruir” manifesta que “existe na essência da verdade uma atracção para a obra” , por intermédio da qual ela atinge a plenitude do seu ser.

O instruir espontâneo da verdade na obra corresponde à instalação do próprio ser da obra, uma vez que a verdade é sempre a verdade do Ser, reclamando o fazer emergir a ontologia como único fundamento possível da teoria da arte. Fazer da verdade a essência da Arte não será desvia-la do campo a que sempre pertenceu, e retirar à Arte o domínio originário da sua ocupação, onde a categoria do Belo emergia como o seu elemento fundamental e fundante? Será que esta perspectivação da Arte nos permite compreender o fenómeno da Arte contemporânea, independentemente das correntes artísticas onde nos possamos situar? São apenas três as referências que Heidegger faz ao Belo e em nenhuma delas esta categoria, que perpassou toda a discussão da Estética Ocidental, surge com uma relevância específica tomada por si mesma e autonomamente. Apresenta-se como dada numa relação umbilical com a verdade, que se torna em si mesma a categoria o elemento fundante da teoria da Arte professada pelo filósofo .

De notar que o Belo não é concebido como uma qualidade subjectiva, mas como algo de objectivamente dado, como uma qualidade que não pertence ao sujeito que contempla a obra, mas como uma característica que o objecto possui em si mesmo, a qual é visionada pelo sujeito no momento de eclosão da verdade: “A luz do aparecer da verdade em obra é a beleza. A beleza é um modo de eclosão da verdade” . O Belo é o “instrumento” disposto ao serviço da verdade, o modo próprio da verdade se apresentar em obra. A limite, funde-se com a própria verdade, perdendo o seu estatuto próprio no seio da obra. A beleza não se encontra mais ao lado da verdade; ela é a luz da própria verdade que faz ver o Ser. Considerado, nesta dimensão, o Belo não é em si mesmo relativo ao prazer estético, mas apenas aquilo que reside na forma () do objecto, aquilo que abre a clareira a partir do Ser e que em virtude de tal abertura o faz ver. O Belo não tem mais um valor estético, mas ontológico.

A Arte é, pois, por essência, Wahrheit, Verdade. Significará uma tal afirmação que a obra de arte é apreendida como cópia ou como reprodução mimética do real? Ou será que a obra de arte consiste numa simples representação de uma ideia que habita genialmente na mente daquele que a cria?

Tanto um como outro postulado, que predominaram em algumas épocas da História da Estética, jamais têm lugar no pensamento heideggeriano. A sua noção de verdade, bem como a de criação, encontram-se situadas muito para além do que é entendido como representação ou cópia da natureza. A concepção de arte como  está completamente fora de questão.

Todavia, também não se trata de fazer renascer a concepção tradicional de verdade como conformidade a um objecto, como uma “adequatio”, como a entendeu a Idade Média, ou como , segundo o entendimento de Aristóteles. Verdade significa, aqui, “fazer-provir” (Ver-an-lassen) o que está em estado de latência à não-latência. Ver-an-lassen diz respeito à presença de tudo o que aparece, no sentido de pro-duzir (Hervor-bringen), sendo o pro-duzir o único meio pelo qual o que é oculto chega ao estado de não-ocultação. A um tal acontecimento dá-se o nome de des-velamento -  , Wahrheit. E por des-velamento entende-se o vir-à-luz do Ser. É esta a essência da verdade.

Longe de ser uma imitação da natureza, a obra de arte é um símbolo (), tal como nos indica o exemplo do Templo grego, obra de arquitectura não inserida entre a arte figurativa. Nesta perspectiva, dois elementos diferenciados concorrem para a realidade da obra enquanto tal: o Mundo e a Terra.

A obra é, em primeiro lugar, a “representação de um mundo” (Aufstellen einer Welt). Aqui o termo Welt não é dado como um conceito análogo à ideia Kantiana de Mundo, não significando, portanto, um simples ajustamento de coisas dadas, numeráveis ou inumeráveis; não é um objecto colocado perante nós para que o consideremos, não é algo de palpável ou de imediatamente perceptível pelos órgãos dos sentidos. Transcende a tangibilidade fenomenal dos objectos realmente dados. Por Welt entende-se o conjunto característico de pensamentos, ideias, crenças, costumes e sentimentos próprios de uma época histórica determinada; é uma dimensão cultural emergente que caracteriza esta ideia peculiar de Mundo.

O Mundo representa uma existência concreta, histórica e particular. É o local onde se desenrola a história de um povo, é a expressão de uma cultura: É precisamente a obra Templo que dispõe e reúne à sua volta a unidade das vias e das relações, nas quais nascimento e morte, vitória e derrota, dão ao ser humano a figura do seu próprio destino. A “amplitude aberta destas relações dominantes é o mundo deste povo histórico” .

Pelo Mundo a obra de arte está ligada, de múltiplas maneiras, aos grandes eventos da vida de um povo. Tem parte integrante no nascer e no morrer, nas suas alegrias e nas suas tristezas. É o espelho sempre vivo e vivificante de uma memória cultural que não se deixa perder no tempo e no espaço. É o monumento consagrado de tudo isso, a expressão mais marcante da vivencialidade de uma época, espelhando a sua alma, a sua essência mais recôndita. Nela o povo toma a verdadeira consciência de si mesmo, encontrando nela o testemunho manifesto da época em que vive. A obra é doadora do tempo, e este deixa nela marcas eminentes da sua presença.

Instalar (Aufstellen) um Mundo é, pois, o que significa ser obra. Aufstellen não designa, porém, uma simples exposição num Museu ou numa Galeria de Arte. Designa o “erigir para consagrar e glorificar” . Toda a obra representa e celebra um Mundo, encarna a civilização da qual nasceu; constitui a época humana de que faz parte, sendo sempre um testemunho, um coisa viva.

Em segundo lugar, a obra é a revelação da Terra (Herstellen der Erde). Ao erigir um Mundo, a obra, longe de deixar desaparecer a matéria, manifesta-a. É indissociável do mármore ou da madeira de que é feita, bem como do céu ou da luz que o ilumina. Toda a obra tem um local natural, um , que a topografia jamais pode percepcionar. Este local é capital para o emergir da obra, e uma vez emersa ela ilumina-o. Todas as coisas deste Mundo são o que são porque se destacam do fundo obscuro que as suporta. A este fundo os gregos chamaram : instância inesgotável de onde todos os entes emergem originariamente, predominância estável que faz desabrochar o ente na máxima plenitude do seu ser, fundo amorfo onde todas as coisas tomam forma determinada. A um tal fundo fundante, Heidegger chama Terra (Erde).

A Terra que, por essência se desdobra em todas as coisas, simboliza natureza, “a matéria-primitiva”, o fundo (Grund) secreto pelo qual todas as coisas vêm à existência. Só esta análise nos permite chegar à verdadeira coisidade da obra: a obra é bem uma coisa não porque seja uma matéria informada, mas porque pertence à Terra, a partir da qual todas as coisas recebem a sua determinação específica. Instalando um Mundo, a obra faz provir a Terra, esse local onde o homem, dado na sua historicidade, funda o seu habitação no Mundo.

Mas é preciso notar que a Terra (no sentido de ) não se dá como uma abertura na clareira (Lichtung). Bem pelo contrário, enquanto fundo abissal que é surge, por essência, como algo que se fecha em si mesmo, como algo que gosta de se esconder. A Terra é o fundamento oculto, mas essencial a toda a obra de Arte, não havendo obra que não lhe pertença. Longe de se opor à natureza -  - a Arte tem esse privilégio, sendo ela a única, de estar em consonância com ela, manifestando-a como aquilo que não pode ser manifestado. A obra de arte escava até ao fundo os domínios insondáveis da natureza, trazendo-os à luz do dia na sua máxima veracidade, mas nunca mimeticamente.

Mundo e Terra, embora sejam dados distintamente, são, contudo, intrinsecamente inseparáveis: o Mundo funda-se sobre a Terra, e a Terra surge através do Mundo. Repousando sobre a Terra, o Mundo aspira, no entanto, à sua dominação. Mas, a Terra, por seu turno e enquanto salvaguardante, pretende nela fazer entrar o Mundo para o reter em si mesma.

Afrontando-se, Mundo e Terra travam entre si um combate. Combate não significa aqui discórdia ou disputa. A noção que o termo em si mesmo encerra jamais pertence ao domínio da pura destrutividade. Ao invés, evidencia uma capital positividade: o combate apresenta-se como aquela instância onde o Mundo e a Terra ou, por outras palavras, a Cultura e a Natureza, se tornam si mesmas. Somente neste combate essencial as partes adversárias se elevam à plenitude do seu ser. É nesta elevação que os combatentes afirmam a sua essência, quer dizer, auto-afirmam-se (Selbstbehauptung) numa reciprocidade primordial. Assim, a Terra não pode renunciar à abertura do Mundo se quer ser ela mesma e o Mundo, se quer ser ele-próprio, não pode esquivar-se à predominância da Terra. Este combate tende para o equilíbrio, para a unidade. A limite, o combate não é senão a unidade da diferença no mesmo.

Instalando um Mundo e fazendo provir uma Terra, a obra de arte realiza no seu seio o combate original. Aliás, ela é mesmo a primeira instigadora desse acontecimento, em cuja realização reside, de um modo autêntico, o Ser - obra da obra. A obra é o palco supremo de uma guerra, ao colocar em equilíbrio a luta incessante de dois elementos aparentemente irreconciliáveis: a existência bruta da Terra e o Mundo cultural do homem. Como bem observou Jean Lacoste “ a unidade que repousa na própria obra, nasce entre o mundo da claridade apolínia do destino do homem, e a obscuridade ‘dionisíaca’ da terra. A plenitude da obra é o fruto de um equilíbrio impossível entre o mundo histórico e a terra inumana” . São estes os traços essenciais do ser-obra da obra.

Erguendo um Mundo e fazendo brotar os mistérios insondáveis da Terra, a obra de arte é a única potência capaz de abordar na mais alta profundidade a excepcionalidade e a misteriosidade do existente, ao promover a plena realização da verdade. Mais do que nenhuma outra faculdade humana, a actividade estética faz ocorrer a verdade: “es das Geschehen der Wahrheit”, é a afirmação fundamental. Pretender-se-á significar com esta afirmação que a arte capta a verdade absoluta do realmente existente? É evidente que não. Uma tal verdade, se é que existe, esquiva-se sempre perante as limitações do entendimento humano. O que Heidegger nos pretende dizer é que o artista descobre e constitui a verdade servindo-se de um tipo de inteligência particular: o Mundo da sua época e do seu Povo. Pela arte extrai o véu que cobre a existência em bruto por intermédio de um Mundo que, não sendo universal nem invariável, não poderá chegar sobre uma luz absoluta ou intransitória. A obra de arte “cria” a verdade segundo um Mundo que coopera na sua génese.

No entanto, jamais nos é permitido afirmar que a verdade “criada” pela actividade artística precede o emergir da própria obra, como defendem aqueles que reduzem a obra de arte à expressão de uma ideia previamente existente na mente humana. A verdade revelada pela obra de arte nasce precisamente do conflito estabelecido entre o Mundo inteligível e a obscuridade da Terra: “A Terra não surge através do Mundo, o Mundo não se funda sobre a Terra senão na medida em que a verdade advém como o combate original entre a iluminação e a ocultação (...) Instalando um Mundo e fazendo brotar a Terra, a obra é a batalha onde é conseguida a vinda ao dia do ente na sua totalidade, ou seja, na sua verdade” .

Esta passagem faz-nos ver a verdade na sua mais radical e plena significação, indicando-nos que a verdade não surge somente como des-velamento (), mas sobretudo como aquilo que desdobra o seu ser no combate entre a clareira (Lichtung) e a ocultação, na adversidade do Mundo e da Terra. As profundezas do seu ser deixam transparecer a reciprocidade adversa do velamento e do não-velamento. Por isso, também ela é não-verdade, em virtude de pertencer ao domínio do “ainda-não-desabrochado”. Nesta concepção de verdade estão invariável e inevitavelmente presentes pares de elementos cujos pólos são opostos: o brilho e a obscuridade; o des-velamento e a ocultação. É somente no afrontamento de uma tal adversidade que é conquistado o espaço de abertura. E a partir do momento em que é aberta a clareira no seio do ente, encontramos o lugar próprio de onde pode emergir a criação (Schaffen) artística, o que nos faz ver a obra como “ser-criado”.

Não obstante todas as referências que foram feitas relativamente à problemática da criação, aquando da diferenciação entre pro-dução artística e produção artesanal, outros elementos devem ser, de igual modo, salientados para uma melhor compreensão desta temática. Antes de mais é necessário fazer notar que a expressão “ser-criado” introduz-nos manifestamente no âmago da relação estabelecida entre o criador e o pro-duto da criação. O que existe de propriamente obra na obra consiste no facto de esta ter sido criada pelo artista e não produzida. Devemos tomar em consideração a actividade própria do artista para encontrar a origem da obra de arte, uma vez que qualquer tentativa de determinar o ser-obra exclusivamente a partir da obra afigura-se como algo completamente impraticável.

Teremos de afastar a ideia de que a relação estabelecida entre o artista e a obra, nos possa conferir o direito de exaltar o “génio” daquele que exerce uma actividade assim determinada. Heidegger é bem claro no que concerne a este ponto, quando afirma que “ o ser-criado não deve testemunhar o êxito daquele que tem um tal mister, para dar assim privilégio público ao realizador” . É, de certo modo, decretada a “aniquilação” da presença do artista após o acto de criação, em prol da apologia da sobreposição do criado em relação ao criador. É manifesto que o autor não visiona a criação como o resultado do exercício de uma virtuosidade genial de um sujeito soberano, tal como ela é interpretada pelo subjectivismo moderno. Ao invés, evidenciando uma relação umbilical com a teoria da verdade, a “criação” artística consiste simplesmente em “extrair” (SchÖpfen) a verdade do ente e em colocar uma tal verdade em obra.

Se assim é toda e qualquer possibilidade de criação - entendida no sentido de fazer brotar o que ainda não é, significação habitual do conceito - é completamente incompatível. Se quisermos manter o termo “criação”, teremos de o pensar exclusivamente no sentido de pura representatividade daquilo que se mostra: “criar” não é mais do que um modo de desvelar, de dar a conhecer, de apresentar e representar o Ser na sua verdade; toda a criação é, nesta perspectiva e por analogia com a noção tradicionalmente concebida deste conceito, uma falsa criação e o artista é apenas o mero intermediário entre o Ser a desvelar e a obra que o desvela. A função do artista não é a produção de algo de novo , mas o fazer surgir, o trazer à luz o que já é e permanece em estado de pura latência. O artista é o des-ocultador, o des-velador do que por si mesmo não se mostra, e a obra é o meio privilegiado dessa mostragem, dessa des-ocultação, desse des-velamento.

O artista, enquanto sujeito autónomo e auto-suficiente perante a obra, desaparece completamente para dar lugar ao mero recebedor ou capador da verdade do ser. Situa-se no domínio da mais inerte passividade, não passando de um mero instrumento por meio do qual a verdade do ente é disposta em obra. Todas as características que a dita Estética lhe tem atribuído originariamente, tais como a livre capacidade de imaginar ou criar, de transformar em obra um sentimento ou uma ideia, de produzir originalmente o que ainda não é, são-lhe completamente coarctadas. Por isso, o “ser-criado” da obra consiste, apenas, na constituição da verdade em estatura, isto é, no tomar forma da verdade no ente.

Embora se torne real no curso deste processo de criação , dependo a sua realidade deste processo, o “ser-criado” não é suficiente para definir a essência da obra de arte. Em vez de submetermos a obra aos nossos desejos e à nossa inteligência, devemos deixar a obra ser obra, permitindo-lhe que seja realmente o que é em verdade. A esta postura, Heidegger chama vigilância/cuidado ou salvaguarda (Bäwahrung) da obra.

Senão podemos conceber a obra sem ter sido criada ( mesmo que essa criação seja falaciosa), também não podemos conceber o criado sem guardiões, na medida em que é apenas na salvaguarda que a obra se dá no seu “ser-criado” como tal. Esta salvaguarda é essencialmente Saber (Wissen), e este modo particular de conceber o Saber jamais diz respeito à experiência estética individual, jamais se confunde com a simples informação erudita. Trata-se de um saber meditativo que não é mais do que uma preparação prévia e indispensável para o vir a ser da verdadeira Arte. É o Saber assim concebido que pode preparar gradativamente à obra o seu espaço próprio, aos criadores as suas vias e aos guardiões o seu local apropriado. Neste sentido, o saber apresenta-se, por uma lado, como um querer, como uma resolução e, por outro lado, como uma instância superior ao conhecimento do conhecimento.

Salvaguardar a obra consiste em permanecer na verdade do ente que advém em obra. Esta fidelidade à verdade da obra que nos liberta da empresa quotidiana do ente, direccionando-nos para o Ser, longe de isolar os homens, fá-los entrar na pertença da verdade advinda em obra, fundando uma comunidade de homens. Salvaguardar é, a limite, o modo supremo de contemplação, é a verdadeira “atitude estética” heideggeriana. Por contemplação não deve entender-se a simples observação ou deleitação perante o objecto. Contemplar significa: dispor-se na verdade advinda em obra, e permanecer atento ao brilho dessa verdade.

Retomando e completando a concepção/definição de arte, é-nos permitido afirmar que a arte é bem o dispor em obra da verdade do ente pela criação e pela salvaguarda. Criadores (artistas) e guardiões (contempladores) formam uma única comunidade que pertence à essência da obra: “se arte é a origem da obra, isto quer dizer, que ela faz surgir na sua essência o que, à obra, pertence reciprocamente: a comunidade dos criadores e dos guardiões” . A arte torna-se não mais do que a salvaguarda criadora, criando a verdade na obra, tese que permite a Heidegger ultrapassar a oposição evidente entre a contemplação e a criação, entre o gosto e o génio.

A Arte, na medida em que deixa advir com a máxima fidelidade a verdade do ente ( a grande inferência a que se chega nesta explanação direccionada para a auscultação da essência da arte) é, por excelência, Dichtung, Poema. Por Dichtung não se entende, em sentido próprio, a poesia enquanto género literário, pois o poema jamais é tomado como o resultado de uma “vagabundagem do espírito” inventada a seu bel-prazer, ou como um deixar fluir da imaginação até terminar na irracionalidade. Dichtung, enquanto verdadeiro poema, é um projecto de iluminação na abertura, na Lichtung, na clareira, do Ser. Por conseguinte, torna-se óbvio que a essência do Poema só poderá ser buscada com um alcance suficientemente claro e evidente, a partir do momento em que a desviarmos dessa qualidade da alma .

A Poesia é, radicalmente falando, a obra suprema da Linguagem. A reflexão heideggeriana sobre a linguagem não é mais uma mera perspectivação da relação possivelmente patenteada entre a linguagem e a realidade, sobre a propriedade ou impropriedade da mesma para descrever as coisas, nem tão-só uma reflexão sobre um "aspecto" do estar-aí do homem. Ao invés, essa reflexão é a forma mais eminente da experiência e da expressão da própria realidade, já que é na linguagem que se dá a abertura do Mundo, que se dá o ser das coisas e, por isso, o verdadeiro modo de perscrutação daquilo que se afirma como existente só pode ser atingido através do auscultar do significado primordial das palavras.

De facto, as coisas não são fundamentalmente coisas presentes no mundo-exterior, mas na palavra que as nomeia originariamente e as torna acessíveis, até mesmo na presença espacio-temporal. As coisas são, no sentido do recolectante "fazer-morar", só na linguagem que, como veremos adiante, é essencialmente Poesia: eis como deveremos entender a afirmação segundo a qual é a palavra que "torna coisa" (be-dinget),a coisa (Ding). Se quisermos compreender este modo de ser da coisa na palavra devemos pensar, antes de mais, no gosto heideggeriano pela etimologia que é justamente uma maneira de remontar, através das vicissitudes e das conexões das palavras, às dimensões autênticas, ontológicas, da coisa em si mesma nomeada.

A figura etimológica, a escavação do significado a partir das raízes verbais e da história das palavras é, na sua mais plena acepção, uma "emergência", um “des-ocultamento", um movimento para a luz. Qualquer investigação séria sobre o ente deve adoptar, como ponto de vista, as considerações linguísticas, em virtude da linguagem se apresentar como a chave que abre a porta do des-velamento do Ser, do Homem e do Mundo. A palavra é um caminho (Weg), ou melhor, o caminho privilegiado que nos permite pensar, através do depoimento existencial que transmite, o Ser do ente, quer dizer, o Ser daquilo que realmente é, amiúde obnubilado no nosso discurso quotidiano, no seio do qual as palavras perderam o seu referente primordial, remetendo umas para as outras e não mais para o Ser. Deparamo-nos, todos os dias, com Discursos vazios de conteúdo, pois o modo de significação do que é, emaranha-se na sequência mais ou menos lógica, no encadeamento de um conjunto de fonemas mais ou menos articulados, mas que perderam de vista a sua veraz significação ontológica. É indubitável que as coisas só são, realmente, enquanto se dão na proximidade do próprio Ser, tomado como aquilo que funda e abre toda a abertura histórica, embora ele-mesmo não se reduza a uma tal abertura.

Perspectivando à luz da tese heideggeriana as vivências quotidianas do "homo superfulus", que habita cada vez mais cada um de nós nestas duas últimas décadas, não podemos deixar de afirmar, peremptoriamente, que a palavra e a linguagem jamais são invólucros onde as coisas podem ser empacotadas para o comércio daqueles que as utilizam; não se podem consumir do mesmo modo que os triviais produtos que esta sociedade consumista nos apresenta e nos "pressiona" a angariar, sem que tenhamos a mais lúcida consciência disso, nos tão frequentados hipermercados, onde as palavras, e os livros que as encerram, são comercializadas de modo similar e quiçá com o mesmo estatuto do quilo de arroz. O Pensamento Ocidental esqueceu, de facto, a máxima fundamental: é na linguagem e , portanto, nas palavras, que as coisas nascem e verdadeiramente são. Afirmar a existência, dizer que uma coisa é, significa falar do ser das coisas, como somente a Linguagem originária pode fazê-lo. Impõe-se-nos, por isso, como estritamente necessária, a refutação da tese que defende a existência de uma arbitrariedade entre o que se diz e o que é, quer dizer, entre o Dizer e o Ser, porque em cada sentença que proferimos o Ser é efectivamente nomeado.

Devemos recusar, sem reservas, a tendência de certo modo nominalista da sociedade contemporânea, particularmente registada depois do grande advento da Publicidade que tem feito crer ao comum dos mortais - que vagueiam com as suas mentes errantes por este universo de quase arbitrariedade semântica - que as coisas ou objectos da experiência não têm realidade intrínseca fora da linguagem que as descreve e as faz falar.

A linguagem opera o des-velamento das significações do Mundo, não havendo, portanto, dois planos: o do percebido e o do conhecido; o do falado e o do expresso. A palavra não introduz um sentido num conteúdo. É, ao invés, o conteúdo que se revela significante na linguagem. É definitivamente forçoso destruir a perspectiva metafísica: a linguagem não se torna significante a partir dos objectos compreendidos pelo pensamento e significados, em seguida, pelas palavras; são, antes, os objectos que adquirem a sua plena capacidade de significação a partir da linguagem falada.

O sentido do Discurso , que Heidegger define em Sein und Zeit como sendo " a articulação significativa da compreensão do ser-no-mundo no sentimento de situação" , nunca é construído, mas sempre descoberto. O mundo mostra-se-nos investido de significações utilitárias e poéticas. Daí que a linguagem seja tomada como uma leitura hermenêutica da experiência, expressão que assume uma vasta e originária significação ontológica, ao indicar a manifestação do carácter linguístico do Acontecimento do Ser.

O homem compreende sempre o Mundo no interior de um projecto interpretativo , cuja linguagem é a sua única justificação. Muito embora as coisas existam fora do gesto falado, o Mundo, esse horizonte inteligível que abre acesso aos entes, só existe, em sentido autêntico, na e pela interpretação efectuada pela e através da linguagem. Apenas onde há linguagem há Mundo, quer dizer, uma esfera em permanente transição de decisão e de obra, de acção e de responsabilidade, mas também de arbítrio e de con-fusão.

A análise existencial não é, definitivamente, senão um estudo do homem no universo do Discurso. O "Da-sein" determina o modo como o próprio homem se interpreta como ente que fala, e falar equivale a fazer surgir o Ser do real: a linguagem é um modo do Ser, uma estrutura da Ek-sistência . Porém, não é um existencial entre outros, mas o existencial fundamental no qual todos os outros ganham corpo. A linguagem não é somente uma possibilidade do "Da-sein”, mas uma determinação essencial do ser-homem, não obstante constituir, a um tempo, a sua grandeza e a sua miséria.

O discurso do Mundo é, inextrincavelmente, uma palavra do Ser. E a Ek-sistência é o discurso que reflecte esta linguagem fundamental: "a linguagem é a casa do ser" , na qual o homem habita e, deste modo, ek-siste , pertencendo `a verdade do Ser que ele próprio vigia. Em Unterweges zur Sprache , Heidegger afasta toda a falsa interpretação desta metáfora, que aliás é muito mais do que uma simples metáfora: uma casa recolhe passivamente aqueles que abriga, enquanto a linguagem tem o poder efectivo de trazer à luz, de des-velar a essência do Ser e o ser do Homem.

A importância crucial conferida pelo filósofo à linguagem na citada passagem de Briefe Über den Humanismus - e que urge recuperar face a este premente esquecimento da autenticidade da linguagem que conduz, em cada Discurso, a que as palavras remetam meramente para o viso de si próprias e não mais para o Ser - resulta justamente da firme convicção segundo a qual a linguagem é própria do homem, não apenas porque para além de todas as suas outras faculdades o homem também tem a genial capacidade de falar, de comunicar inteligivelmente através das palavras, mas sobretudo porque apenas por intermédio desta irredutível via, ele tem acesso privilegiado ao Ser.

Segundo o mesmo princípio, a função da linguagem é deixar que o Ser seja. Todavia, jamais poderemos obnubilar que não é mais o homem que determina o Ser, mas o Ser que, através da linguagem, se revela ao homem e o determina. Face à significação atribuída a este modo específico de revelação, o homem surge-nos apenas como o portador da linguagem - em virtude de a linguagem não radicar na essência do homem, mas manifestar uma essência histórico-ontológica fundamental, sendo segundo esta essência que ela é dita como a "Casa do Ser" - e como tal tem a função, sendo ele o único, de mostrar o Ser por seu intermédio.

Revelando esse extraordinário poder de manifestar a originariedade e primacialidade da Existência, de fazer advir o Ser à luz, de o des-ocultar, de o colocar na não-latência e com ele a essência do homem, a linguagem afigura-se como a única morada onde o Ser pode ser realmente acolhido e posteriormente mostrado na sua nudez primordial.

A linguagem do Ser suporta a nossa linguagem de todos os dias: o Ser é o não-dito e o não-falado de que se alimenta a nossa palavra. O encontro com o para além das palavras é possível porque o Ser , essa Alma da linguagem, é o lugar da nossa permanência. A linguagem que nos faz comunicar com o Mundo e com os outros homens exprime sempre algo de diferente do que se diz, ou seja, exprime as relações ocultas que a palavra mantém com o Ser, quer dizer, com aquilo que em si mesmo é e não necessita de nada para que seja.

A linguagem é um acontecimento que, ao manifestar-se, produz a indicação e a língua. A palavra é a marca do acontecimento interior à linguagem e a escrita o depósito da Tradição do Ser. Por isso, ao interrogar-se o Ser, a linguagem arranca constantemente a palavra ao peso significativo da Tradição e a escrita aos limites do signo para a fazer regressar à presença originária que permititu a sua manifestação. Neste sentido, a linguagem reside na diferença interior à palavra do Ser que se inscreve entre o acontecimento o qual, ao mesmo tempo, desvela e oculta a letra ou a palavra que morre no limiar da coisa.

A ideia de uma linguagem transparente ao espírito é seguramente uma ilusão de representação. Há sempre para além uma palavra essencial que o coloca na presença, mas que não pode ser captada como palavra porque o acontecimento do Ser é a sua marca concomitantemente oculta e desvelada.

Se em Sein und Zeit a linguagem já ocupava uma posição peculiar, pois, como signo, revelava a própria estrutura ontológica da mundaneidade, nas obras posteriores, nomeadamente em Der Ursprung des Kunstwerkes e na conferência intitulada Hölderlin und das Wesen der Dichtung, aparece-nos como o próprio modo do abrir-se na abertura do Ser, principalmente enquanto é pensada como poesia , essa arte originária da palavra.

Posto que a abertura do Mundo se dá sobretudo na linguagem, é nela que se pode perscrutar a autêntica inovação ontológica, uma vez que nos é dito que a “linguagem é poesia no sentido essencial" , ou como Heidegger refere em Einführung in die Metaphysik , " a linguagem é poesia originária (Ur-dichtung) em que um povo diz o Ser" e, inversamente, a grande poesia, pela qual um povo entra na sua História, inicia a configuração da linguagem.

Dizer que a linguagem é poesia, apenas no sentido essencial, significa afirmar que o falar autêntico é criação , abertura, inovação ontológica, uma vez que nem todo o falar é criação, já que comummente se torna um mero instrumento de comunicação que se limita a articular e a desenvolver, a partir do seu próprio interior, a abertura já aberta. Mas, na linguagem essencial instituem-se os mundos históricos em que o estar-aí e o ente se relacionam entre si nos vários modos de presença humana no Mundo, o que faz da linguagem, tomada na sua dimensão poética, "o fundo que rege a História do homem" , porque o que perdura fundaram no os poetas. Fundar o que permanece ou fundar o permanente significa desvelar o Ser para que o ente apareça, só pelos poetas alcançado por serem os únicos capazes de nomear os Deuses e todas as coisas, naquilo que em si mesmas são.

O nomear do poeta não consiste, porém, em atribuir um nome a uma coisa anteriormente conhecida mas, ao invés, falando, o poeta celebra a palavra essencial e celebrando-a, o ente passa a ser nomeado no que é; através desta nomeação, torna-se conhecido enquanto é, pois a poesia é, na sua essência, a "fundação do Ser pela palavra" e esta fundação é doação livre . Quando os Deuses são nomeados originariamente pelo poeta e a essência das coisas se torna palavra, a própria existência humana é inserida num contexto firme e é colocada sobre o terreno desta fundação.

A poesia é, radicalmente falando, não um fenómeno de Cultura ou a expressão de uma "alma natural", mas a obra suprema da linguagem, enquanto dada como projecto de iluminação na abertura , na clareira (Lichtung) do Ser. O dizer do poeta é este mesmo projecto de iluminação onde é dito como o ente chega à abertura. Este dizer, que em si mesmo é poema, nomeia o Mundo e a Terra assim como o espaço de jogo do seu combate. Precisamente por isso, cada língua é o surgimento do dizer no qual, para um povo, se abre historicamente o seu Mundo e onde é salvaguardada a veracidade da Terra no seu oferecimento original.

A poesia é - onde a língua manifesta a sua essência, que é o dizer do Ser de todos os entes - essencialmente pensamento. Pensamento não significa aqui , determinação do conhecer como atitude teórica, ou , tomada no sentido da reflexão ao serviço do fazer e do produzir, ou , mas aquilo que pertence (gehören) e escuta (horen) o Ser. “Numa palavra, o pensamento é o pensamento do Ser” . A Poesia é uma forma de pensamento e este, por seu turno, é por essência, poetizar (dichten).É, pois difícil distinguir neste momento a linguagem autêntica, o pensamento e a Dichtung. Em última análise, e não obstante as diferenças conceptuais que possam evidenciar, estes três elementos acabam por se tornar homólogos, homologia que é estabelecida por uma comunidade essencial: das Sein.

Dispondo desse poderoso “instrumento” de des-velamento - a Linguagem - a Poesia afigura-se como sendo uma forma de , tal como a arte genericamente considerada. Por isso, em vez de banirmos os Poetas da cidade, como havia pretendido Platão, urge requerê-los por serem os únicos que privilegiadamente dispõem da genial capacidade de instaurar uma ordem durável, ao nomearem as coisas que permanecem inacessíveis ao vulgo.

Dizendo o que é o ente na radicalidade do seu Ser, a Poesia instaura-o; e tal instauração possui o carácter de ser um dom fundante e inicial, rebatendo toda a familiaridade da aparência. Fundado poeticamente tudo o que é, o homem funda-se a si mesmo. Compreendemos, assim, porque é que o "Da-sein" é poético (dichtrich) e em que sentido é dito que "de um modo poético habita o homem sobre esta Terra". Habitar poeticamente significa: estar na presença dos Deuses e ser tocado pela proximidade das coisa.

O fundamento do "ser-aí" (Da-sein) humano é, pois, poético, como o próprio acontecer da linguagem primordial que é poesia como fundação do Ser. Se compreendermos esta essência da Poesia dada como linguagem primordial de um povo historicamente concebido pela qual diz o seu ser, percebemos, ao mesmo tempo, que a essencialidade da linguagem tem que ser compreendida a partir da essência da poesia, tal como a essência da poesia é compreendida a partir da essência da linguagem.

Então teremos de afirmar que a linguagem não é apenas criação e inovação ontológica, como já se havia referido, mas, sobretudo, a sede, o lugar do acontecimento do Ser como o abrir-se das aberturas históricas em que o "Da-sein” está lançado. É a linguagem que "rege o nosso estar-aí" e, por esta razão, dependemos dela de um modo umbilicalmente profundo: " a linguagem não é mais um instrumento disponível para o homem, mas aquele acontecimento que dispõe da maior possibilidade de ser homem". Enquanto tal apropria-se de nós, na medida em que com as suas estruturas, delimita, desde o início, o campo da nossa possível experiência do Mundo: só na linguagem as coisas nos podem aparecer e só no modo como ela as faz aparecer; é a palavra que proporciona o Ser da coisa e todo o falar concreto, autêntico, pressupõe que a linguagem já tenha aberto o Mundo e que também, a nós, nos tenha colocado nele.

Toda a problematização da linguagem e, em rigor, todo o seu uso ôntico, requerer que ela já nos tenha falado. A linguagem é, acima de tudo e originariamente, mais do que uma faculdade de que dispomos; é um "dirigir-se a nós", sem o qual não poderíamos falar. Se isto significa, antes de mais, que todo o falar autêntico é fundamentalmente uma escrita, não quer dizer, no entanto, que o homem seja um ouvinte passivo, uma vez que a linguagem não é, acidentalmente, um "dirigir-se a nós". Pelo contrário, é nesse "dirigir-se a nós", que somos os seus ouvintes e respondedores privilegiados, que consiste a sua própria essência.

A linguagem, afirma Heidegger em Sein und Zeit , "tem necessidade da fala humana, embora não seja um produto da nossa actividade linguística". Ela é o anúncio, o apelo, a mensagem e nós, homens, somos usados por ela como” mensageiros da voz do Ser". A linguagem não se dá senão no falar do "Da-sein" e, todavia, é verdade que tal falar encontra já delimitadas as suas possibilidades e os seus contornos na própria linguagem, ainda que não como uma estrutura rígida que o obrigue, mas como um apelo a que responde. É neste sentido que devemos entender porque é que Heidegger retoma do” poeta do poeta" (Hölderlin) a caracterização do homem como diálogo, porque é que o ser do homem se funda na linguagem e porque é que só acontece verdadeiramente no diálogo.

Por linguagem não se entende, portanto, um mero instrumento ou um meio de comunicação, mas a expressão representativa da veracidade do que é comunicado, sempre numa relação com a alteridade: “A linguagem é a casa do Ser” (Die Sprache ist das Hause des Seins), sendo por excelência os pensadores (die Denkenden) e os Poetas ( das Dichtenden) os guardas (der Wacheter) desta habitação (dieser Behausung) , embora os poetas se apresentem numa relação de primazia sobre os pensadores, uma vez que a “poesia penetra toda a arte, todo o acto pelo qual o ser essencial (das Wesende) é desvelado no Belo” .

Significará esta afirmação que a Arquitectura (Bauen) e as Artes Plásticas (Bilden) devem ser necessariamente fundadas sobre a Dichtung? Serão todas as Artes meras variantes da arte da palavra? Temos de nos desviar deste impasse bizarro, na medida em que a Poesia é apenas um modo entre outros do projecto de iluminação do Ser. Todavia, sendo a sua essência a Linguagem, a Arquitectura e as Artes Plásticas só são possíveis, só advêm verdadeiramente em virtude da abertura operada pelo dizer e pelo nomear. Só por meio da linguagem podem ser efectivamente guiadas. Todas as artes são cada uma a seu modo Dichtung, no interior da clareira do Ser advindo em obra.

A Poesia é pensada precisamente a partir da , isto é, como um dos modos de manifestação do Ser. A essência da Poesia apreendida a partir da experiência grega do pensar brota do Ser como do seu fundamento original. A questão da essência do poético, bem como a da Arte, não pode ser pensada senão a partir da questão do Ser. Quando o Ser não é mais compreendido no horizonte do tempo, a historicidade poética manifesta-se como o domínio próprio onde a verdade do Ser é colocada em obra. Longe de exprimir simplesmente uma cultura, a poesia torna possível toda a Cultura. Por conseguinte, se a Arte é na sua essência Dichtung, e a essência da Dichtung é precisamente a instauração da verdade.

A Arte não é uma colecção de coisas num Museu, não é um sector da produção cultural, nem se reduz a uma actividade humana. É essencialmente dada numa fundamentação e concepção ontológica; é um modo privilegiado de interpretar o ente na sua totalidade.

Enquanto instauração da verdade, a Arte chega à sua essência histórica. Toda a Arte é histórica não no sentido de ter uma história, como um fenómeno cultural entre outros da História geral da Humanidade, mas enquanto é a salvaguarda criadora da verdade em obra. É histórica porque é a História, entendendo-se por História não o desenrolar dos factos no tempo os quais, não obstante a sua importância, permanecem sempre como incidentes, mas como o “despertar de um povo para o que lhe é dado concluir, como inserção deste povo na sua própria hereditariedade” .

A origem da obra de arte não é senão a origem do Da-sein histórico de um povo, isto é, a Arte: “A própria arte é, na sua essência, uma origem e não outra coisa: um modo notável de acesso à verdade do Ser que é a própria História” .

Defendendo a arte pela arte, Heidegger transmite-nos a irracionalidade de um posicionamento estético, que termina num impasse perante o qual não há saída possível. Percorremos sempre e inevitavelmente “um caminho que não conduz a parte nenhuma”.
Isabel Rosete

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Reportagem fotográfica da oitava sessão de apresentação de "Vozes do Pensamento", um livro de Isabel Rosete, na "Perlimpimpim", 02/10/2010 - http://isabelrosetevozes.blogspot.com

Os meus mais notáveis agradecimentos à Aldina Ribeiro, ao Tiago e à Alda (da "Perlimpimpim"), pelo gentil acolhimento que me prestaram. Igualmente, aos colabores directos neste evento - Tomaz Parreira, António Azeredo, Gonçalo Rosete, Carolina Martins, Elvira Almeida, Carlos Cardoso, Maria Matos, Manuel Martins... e a todo público que, nesta noite de celebração da Poesia, me acompanhou e aplaudiu com toda a consideração.

Bem-hajam,
IR

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

SAGRADA FAMÍLIA

Jacinto Lucas Pires

Teatro
Estreia dia 16 de Setembro, na Culturgest


“ANTÓNIO Sabem o que é um poodle a roer um osso de pardal? Micro-economia. Sabem o que é o elefante na sala? Macro-economia. Sabem o que é um betinho vegetariano, intelectual e maricas? (Pausa: penteia as sobrancelhas.) Política, política, política! (Ri-se enquanto esfrega os dentes num esforço cada vez mais desesperado.)”

Dados de espectáculo
Interpretação:
Anabela Almeida Arlete
Duarte Guimarães Pedro
Ivo Alexandre António
Joana Bárcia Maria
Miguel Fragata Filho
Encenação: Catarina Requeijo
Cenário e figurinos: Sara Amado
Desenho de luz: José Manuel Rodrigues
Produção executiva: Hugo Quinta
Co-produção: Culturgest e Teatro Viriato

Jacinto Lucas Pires nasceu no Porto (Portugal) a 14 de Julho de 1974. Estudou Direito na Universidade Católica de Lisboa e Cinema na New York Film Academy. Publicou o seu primeiro livro em 1996 e trabalha como dramaturgo e cineasta.
A sua obra encontra-se publicada em português pelos Livros Cotovia e também em espanhol, croata e tailandês. Várias peças suas estão traduzidas em francês, espanhol, inglês e norueguês. Em Portugal, os seus textos foram encenados por Manuel Wiborg, Ricardo Pais, Marcos Barbosa e João Brites. Alguns dos seus contos foram incluídos em colectâneas na Alemanha, em França, em Itália, na Bulgária, no Brasil e em Espanha. Tem contos em várias antologias portuguesas.
Escreveu e realizou duas curtas-metragens: Cinemaamor (1999) – prémio cine-clube no Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira – e B.D. (2004).
A qualidade é precisamente essa, a de escrever como quem pinta ou transcreve para uma pauta o que ouve assobiar na rua. O resultado, pretensiosismo à parte, é excepcional.
In, Expresso

Outros livros do autor:
(teatro)
Universos e frigoríficos (1997)
Arranha-céus (1999)
Escrever, falar (2002)
Figurantes e outras peças (2005)
Octávio no mundo, in Panos (2006)
Silenciador (2008)
(ficção)
Para averiguar do seu grau de pureza (1996)
Azul-turquesa (1998)
2 filmes e algo de algodão (1999)
Abre para cá (2000)
Do sol (2004)
Perfeitos milagres (2007)
Assobiar em público (2008)
(viagens)
Livro usado — numa viagem ao Japão (2001)

“Que seria de Portugal sem Pessoa e sem Camões? Ou da Rússia sem Tolstói, Dostoiévski e Tchékhov? Ou da Irlanda sem Joyce e Beckett? A literatura melhora os países, mesmo quando é para contar suas derrotas e seus horrores – e sobretudo quando conta suas derrotas e seus horrores. Só por burrice um Estado não defende sua literatura. É uma questão de marketing, para não falar de coisas mais elevadas.”

Isabel Rosete

terça-feira, 8 de junho de 2010

Algumas considerações sobre a concepção heideggeriana de Arte e Poesia, I

A obra de arte é o ente da existência metafísica que clama, de novo, resposta ao espanto originário. Assim se apresenta e afirma a concepção heideggeriana de Arte como origem radicando aqui, de um modo insigne, a via pela qual a Verdade tem acesso à abertura historial na Clareira do Ser, à História e à essência mesma da Arte.
Coetânea desta adveniência da Verdade, a Arte tem também – porém, não só ela essa dimensão fundamental de ser um mostrante, e, neste sentido, só neste sentido, um Poema (Dichtung). Capacitada para se jectar na patenteação, no visível do invisível, na surdez do audível, rompendo os invólucros do ocultado, é pro-jecto de clareira, naturalmente despoletadora da própria abertura em que o ente se dá na sua verdade.
É nisso de fazer vir ao aberto o ente enquanto ente des-velado, que a Arte é Poesia, um fazer-mostrante que dilucida, portanto, o modo como o Ser possibilita esse jectar natural para o manifesto, de acordo com o qual o aberto da Verdade se destina a ter estância no ente. Porquanto acolhe a dádiva da Verdade posta em ente e explicita o salto enigmático do Ser ao ente, a obra está no  da diferença ontológica e da fundação de tudo o que é. E na medida em que é concomitante ao originário, enquanto é o lugar do advento da Verdade do Ser que faz apelo para ele, a obra de arte ganha o seu lugar entre os entes mais mostrantes da Existência.
A Arte é Poesia, reitera-o Heidegger, com frequência. Porém, mostra-o a quem o faz? Qual o ente que se demanda pelo porquê de tudo assim ser e acolhe essa mostração como detendo um sentido? O filósofo responde-nos, afirmando em forma de tese: A essência da arte é o Poema. A essência do Poema é a instauração da verdade. Esta instauração, nós tomamo-la aqui num triplo sentido: como dom, como fundação e como inicial .
A assumpção da Arte como Poesia, como esse modo peculiar de ser o fazer-mostrante primordial, cedo requere a necessidade de acolher a temática antropológica e a condução da abordagem ontológica a essa outra, não menos fundamental, da postura metafísica do Da-sein, do Homem enquanto ser-aí (e esse “aí” é o Mundo), da inquirição deste sobre o sentido do Ser, qual ponto nodal que marca e perpassa este pensar, tão genuíno quanto original, do Pensador alemão da Floresta Negra.
Numa tematização da Arte a partir dos conceitos de instauração e de Poesia, a noção de criação-adveniência da obra, relevada tão somente na sua dimensão ontológica, é manifestamente insuficiente. Urge destacar outra interpretação que sobreleve a figura do homem e do seu próprio estar metafísico, porque: toda a instauração não é real senão na salvaguarda (do humano). Assim, a cada modo de instauração, corresponde um modo de salvaguardar .
O que iremos desenvolver sobre a relevância do homem na concepção heideggeriana de Arte e, sobretudo, de Poesia, intersecciona o pano de fundo de uma perspectivação ontológica fundante, havendo, portanto, que representar nesse espaço comum dos dois círculos interligados, respectivamente, as posturas ontológica e metafísica (também antropológica, por mais que esta seja negada por alguns) que, afinal, Heidegger nunca abandonou, nem mesmo nesses momentos inaugurais da sua des-construção do pensamento ocidental. Apenas desse modo se torna possível compreender a Arte como instauração na sua tríplice dimensão de dom, fundação e inicial.
Se, por um lado, temos que é iniludível o facto de que o homem, enquanto artista, não explica a obra na sua radicalidade, porquanto a iniciativa do fazer-obra pertence à Verdade; por outro, que a própria assumpção desta, como des-velamento, só se torna compreensível numa postura em que há Da-sein, esse ente, o único, para quem a Verdade se diz e faz sentido.
Há uma concepção inicial que deve ser superada: a que coloca como categoria mais elevada da compreensão da Arte, a autonomia da obra em relação ao próprio horizonte do humano, ou, como refere Heidegger:
(...) é o simples factum est que quer ser mantido no aberto; isto: que aqui adveio uma eclosão do ente, e que ela advém ainda, precisamente enquanto que este ser-advindo; isto: que uma tal obra é, de preferência a não ser. Este choque: que a obra seja uma obra, e a incessância da sua percussão dão à obra a constância do seu repouso em si mesma. É justamente aí onde o artista, o processo e as circunstâncias da génese da obra permanecem desconhecidas, que este choque, que este quod do ser-criado ressalta o mais puramente da obra .
Se, na origem, o humano se desvanece, a própria instauração da obra no aberto não pode separar-se desse ente que, perante a sua instância, sente o choque e a percussão que dela emana. Instauração no seio do aberto e relevância da questão ontológica? Sem dúvida! Porém, se ser obra de arte, em todas as suas múltiplas formas de manifestação, desde a Pintura à Arquitectura ou da Música à Poesia, é ser um ente mostrante, a proeminência da sua dimensão poética só se torna possível se, aduzido ao momento instaurador inicial do mistério e do enigma, se coloca esse outro em que o Da-sein, na sua qualidade singular de ente que mais insignemente acolhe o Ser, inquire pelo seu sentido. È, apenas, neste sentido que podemos compreender que, para Martim Heidegger, a Arte na sua essência o mesmo é dizer, na sua origem, seja instauração poética da verdade.
Todavia, a essência da Poesia (Dichtung), não se esgota nesse momento originário, qual referente de uma concepção ontológica completamente nova. Antes suscita, e de um modo não menos ressaltante, um novo modelo interpretativo do ente na sua totalidade, uma outra hermenêutica erguida para além dos simples fenómenos, disso que aparece, tão-só, nos domínios estritos da Erlebnis, da experiência-vivida, do simples sentir ou ver dado na, pela, denominada percepção estética, completamente refutada pelo filósofo no que concerne aos domínios da Arte, da Filosofia da Arte que, em nada, com ela compactuam ou se conjugam. Aliás, estaríamos a desvirtuar o pensamento de Heidegger sobre a Arte, se o incluíssemos no âmbito da Estética, tal com teremos, mais á frente,oportunidade de demonstrar.
Sabemos que ao Homem dos “Tempos Modernos” da Técnica, da Ciência e do Cálculo, da ausência do pensamento reflexivo, impregnado na imediatez imprudente do raciocínio, desgarrado da postura metafísica ocidental será impossível “guardar” tanto um hino de Hölderlin como uma ópera de Mozart, um quadro de Van Gogh ou o toque genial do piano de Glen Gould. Não se tendo, em si mesmo, nem nesse outro de si que é a Arte, nem na Verdade que tais obras desdobram, jamais é capaz de as instituir no espaço próprio dessas mundividências essenciais que elas transportam e que, afinal, também são as suas. Assim desenraizadas, as obras não podem mais mostrar o verdadeiro inicial e in-habitual de onde, natural e originariamente, brotaram.
Desenraizar a obra do seu Mundo, do seu espaço originário, eis em que consiste, literalmente, roubar-lhe a poesia: Enquanto posição em obra da verdade, a arte é Poema. E é não apenas a criação, mas também a guarda da obra que é no seu modo próprio, poemática; pois uma obra não permanece real enquanto obra senão nos demitirmos nós mesmos da nossa banalidade ordinária e entrarmos naquilo que a obra abriu, para assim conduzir a nossa essência a ter-se na verdade do ente ,enfatiza o autor.
Manifesta é, agora, a assumpção do homem enquanto ente que, no fulgor da obra, se transporta para uma nova ordem, de todo distinta da que configura a sua existência quotidiana. A obra torna-se uma via, um poro, no qual o homem se en-via para a co-respondência daquilo que a própria obra abriu: a mesma fonte matricial onde se re-conhecem a origem da obra e a essência do homem.
A relevância da obra como mostração poética ganha a sua concretude na conspiração, numa mesma matriz, do homem e da obra, enquanto meios de mostração (cada um a seu modo) da Verdade do ente. Só uma tal co-respondência, que é uma cumplicidade directa, num momento originário, torna possível ao Da-sein o re-conhecimento do que, na obra, concerne a si e ao sentido que confere ao seu existir historial: O projecto verdadeiramente poemático, nota Heidegger, é a abertura daquilo em que o Dasein está, enquanto historial, já arriscado .
Irradiação manifestante de um Mundo que desdobra a sua ordem a partir da relação do Da-sein ao aberto do Ser, mas também ente capaz de possibilitar o total des-garramento do homem em relação ao que lhe é familiar e habitual, transportando-o para um outro aí que não aquele em que tem o costume de estar, para o  originário, onde ele mesmo devém ser-aí, eis como podemos caracterizar a poética da obra de arte.
A tematização heideggeriana sobre a Arte e a Poesia não acolhe a possibilidade do que poderíamos chamar de uma hermenêutica criativa, privilegiante de um  estético. O choque que provoca a existência mesma da obra poética não é desencadeado pelo viso desta que, pela sua força, poderia provocar prazer ou outra qualquer emoção, tradicionalmente considerada como estética.
Não é, de facto, aí que reside a verdade da experiência estética, sendo esta negada se assumida numa dimensão que exclusivamente a reconduza à . Se não é dessa aproximação sensível à obra que provém o poder desgarrante e -tico desta, não deixa o filósofo de conceber uma certa disponibilidade receptiva que poderíamos assemelhar a um real acto de escuta, numa ressonância que aproxima a poética da obra a essa outra, de todas a mais mostrante, residente no poder nominativo da Palavra.
A postura do Da-sein perante a obra e o combate que nela se trava entre clareira e retraimento é um estar co-respondendo ao que na obra silenciosamente se diz. Não propriamente porque a obra “fale”, embora ela sempre nos “fale” de algum modo, mas porque o homem lhe acolhe o Apelo, poeticamente, e, tão-só, enquanto habitante da Terra que ela e por ela instala. Porém, não o apelo do ente-obra em si mesmo, mas do que nele se oferece, ou seja: o brotar longínquo do ente que a obra de arte dá a ver privilegiadamente, mesmo que não de uma forma “claramente vista”.
Detentor do poder da palavra, qual meio conivente do ser de cada ente, o homem é, perante a obra, desenraizado da marca quotidiana do ente, para, numa espécie de nostalgia, sentir a dor que lhe provoca a proximidade desse longínquo a presentificar: o Ser que o ser-obra, enquanto tal, lhe revela.
Querer e saber, eis as características do homem como ente disponível para a escuta da obra nessa sua qualidade instância em que o Ser apela na sua verdade e na sua essência originária: Querer é, com toda a sobriedade, o pôr em liberdade que possibilita ir para lá de si mesmo em existindo e em se expondo à abertura do ente tal como esta se manifesta na obra. (...) A salvaguarda da obra é, enquanto saber, a calma e lúcida instância na e-normidade da verdade advindo na obra .
A obra de arte poética é, nesta conformidade, o lugar em que se potencia o acto de transcensão do humano em relação ao familiar e ao habitual, na persecução de uma verdade mais primeira. Conceder a própria possibilidade de excedência em relação à sua vida interior, na via do horizonte em que o homem co-responde mais ao seu ser, à verdade, eis a dádiva principal que a obra poética concede ao Da-sein.
A instauração da Verdade como começo e a Arte como Poesia, é a tese a que dedicaremos, mais especialmente, a nossa atenção, por ser esta é o cerne de toda a filosofia da arte preconizada pelo autor. Latentemente presente no corpus filosófico heideggeriano, torna-se manifesta, em particular, desde A origem da obra de arte, onde toda esta problemática se inicia e tematiza explicitamente.
Correlativamente, urge tornar visível a peculiar concepção heideggeriana de Poesia, principal ponto de enfoque deste estudo, a partir da questão da origem ou “proveniência essencial” da obra arte, tal como o filósofo gosto de dizer, tomada no seu sentido mais geral.
Conhecendo Heidegger, jamais poderemos conceber a Poesia como um errante inventar do que quer que seja, ou como um oscilar permanente e perpetuante da mera representação e imaginação no irreal. Esta Arte da Palavra, por excelência, essência essencial (o pleonasmo é propositado), fundante, só pode ser pensada enquanto projecto clarificante que se desdobra na des-ocultação; só deve ser perspectivada na qualidade de um modo peculiar do projecto clarificador da Verdade, e, mais adequadamente ainda, como a obra suprema da Linguagem.
Também, naturalmente, como o lugar privilegiado da instalação da Geviert, “quadratura” – o topos originário onde se patenteia a relação intrínseca entre o mortal e o divino, os homens e os deuses ,conceito em derredor do qual gravita o posicionamento onto-artístico do autor, nessa sua genial capacidade de pensador do Sentido do Ser que se mostra pela Linguagem. O estudo da Poesia é, em Martin Heidegger, inseparável do estudo da Linguagem, esse outro tema vivamente presente desde o fenomenológico/ontológico ao artístico propriamente dito, que, a limite, se fundem em derredor da “Questão Ser” (die Seinfrage), onde todas as incursões do seu pensamento radicam.
Pensar a Linguagem ou, mais particularmente como nos demandam as palavras deste peregrino dos “caminhos do campo” , a essência da Linguagem, sempre, na sua relação com a essência da Poesia, torna-se absolutamente imperativo neste passo da nossa investigação.
Numa primeira abordagem, constatamos que o conceito heideggeriano de Linguagem não é sinónimo de uma certa forma de expressão oral e escrita do que importa comunicar; do que transporta apenas, em palavras e fases, o patente e o latente visado como tal. Mas, do que nomeia, pela primeira, vez o ente, sendo este nomear o que trás o ente à palavra e ao aparecer.
Heidegger apresenta-nos uma concepção completamente sui generis, ao determinar a Linguagem como um dom específico do Da-sein, que é dizer projectante, sendo este, por sua vez, primacialmente, Poesia.
Clarificar esta expressão, dizer projectante, é imprescindível para compreendermos a noção de Poesia, tal como o filósofo a apresenta nas suas três linhas essenciais:
1. A fábula da des-ocultação do ente;
2. A fábula do Mundo e da Terra e do espaço de jogo do seu combate;
3. O lugar de toda a proximidade e afastamento dos deuses.
Este dizer projectante prepara o dizível, fazendo, ao mesmo tempo, advir o indizível do Mundo. Por ele comungam, em simultâneo, para um povo histórico, a sua essência e a sua pertença à história do Mundo.
Por esta tríplice via, compreendemos porque é que a obra de arte, ao abrir o Mundo e ao fazer assomar a Terra, instaura-se, ela-mesma, num espaço de combate traçado pela a intimidade da co-pertença dos combatentes, na plena harmonia dos contrários, já anunciada por Heraclito.
É este o espaço sagrado e consagrado dos deuses, onde se encontra, entre estes e os homens, o artista e, mais particularmente, o Poeta, o obrante da Poesia (Dichtung), justamente definida como a arte da palavra pela qual se celebra a essência da própria Arte; precisamente determinada como a Arte inaugural, entre todas as artes, pelo seu nomear primogénito e fundante, pela sua proximidade com o sagrado. E, ainda, de um modo não menos capital, pela sua consagração e salvaguarda da Terra, pela sua dimensão essencialmente historial que transporta, em concomitância, a voz de um Povo e a voz do Deus, encarnadas na voz do Poeta, que as torna audíveis.

Isabel Roset (continua)
In «Projecto de tese de doutoramento - Sobre "A rigem da obra de arte" em Martin Heidegger: os domínios da Poesia eo canto  dos poetas"