terça-feira, 8 de junho de 2010

Algumas considerações sobre a concepção heideggeriana de Arte e Poesia, I

A obra de arte é o ente da existência metafísica que clama, de novo, resposta ao espanto originário. Assim se apresenta e afirma a concepção heideggeriana de Arte como origem radicando aqui, de um modo insigne, a via pela qual a Verdade tem acesso à abertura historial na Clareira do Ser, à História e à essência mesma da Arte.
Coetânea desta adveniência da Verdade, a Arte tem também – porém, não só ela essa dimensão fundamental de ser um mostrante, e, neste sentido, só neste sentido, um Poema (Dichtung). Capacitada para se jectar na patenteação, no visível do invisível, na surdez do audível, rompendo os invólucros do ocultado, é pro-jecto de clareira, naturalmente despoletadora da própria abertura em que o ente se dá na sua verdade.
É nisso de fazer vir ao aberto o ente enquanto ente des-velado, que a Arte é Poesia, um fazer-mostrante que dilucida, portanto, o modo como o Ser possibilita esse jectar natural para o manifesto, de acordo com o qual o aberto da Verdade se destina a ter estância no ente. Porquanto acolhe a dádiva da Verdade posta em ente e explicita o salto enigmático do Ser ao ente, a obra está no  da diferença ontológica e da fundação de tudo o que é. E na medida em que é concomitante ao originário, enquanto é o lugar do advento da Verdade do Ser que faz apelo para ele, a obra de arte ganha o seu lugar entre os entes mais mostrantes da Existência.
A Arte é Poesia, reitera-o Heidegger, com frequência. Porém, mostra-o a quem o faz? Qual o ente que se demanda pelo porquê de tudo assim ser e acolhe essa mostração como detendo um sentido? O filósofo responde-nos, afirmando em forma de tese: A essência da arte é o Poema. A essência do Poema é a instauração da verdade. Esta instauração, nós tomamo-la aqui num triplo sentido: como dom, como fundação e como inicial .
A assumpção da Arte como Poesia, como esse modo peculiar de ser o fazer-mostrante primordial, cedo requere a necessidade de acolher a temática antropológica e a condução da abordagem ontológica a essa outra, não menos fundamental, da postura metafísica do Da-sein, do Homem enquanto ser-aí (e esse “aí” é o Mundo), da inquirição deste sobre o sentido do Ser, qual ponto nodal que marca e perpassa este pensar, tão genuíno quanto original, do Pensador alemão da Floresta Negra.
Numa tematização da Arte a partir dos conceitos de instauração e de Poesia, a noção de criação-adveniência da obra, relevada tão somente na sua dimensão ontológica, é manifestamente insuficiente. Urge destacar outra interpretação que sobreleve a figura do homem e do seu próprio estar metafísico, porque: toda a instauração não é real senão na salvaguarda (do humano). Assim, a cada modo de instauração, corresponde um modo de salvaguardar .
O que iremos desenvolver sobre a relevância do homem na concepção heideggeriana de Arte e, sobretudo, de Poesia, intersecciona o pano de fundo de uma perspectivação ontológica fundante, havendo, portanto, que representar nesse espaço comum dos dois círculos interligados, respectivamente, as posturas ontológica e metafísica (também antropológica, por mais que esta seja negada por alguns) que, afinal, Heidegger nunca abandonou, nem mesmo nesses momentos inaugurais da sua des-construção do pensamento ocidental. Apenas desse modo se torna possível compreender a Arte como instauração na sua tríplice dimensão de dom, fundação e inicial.
Se, por um lado, temos que é iniludível o facto de que o homem, enquanto artista, não explica a obra na sua radicalidade, porquanto a iniciativa do fazer-obra pertence à Verdade; por outro, que a própria assumpção desta, como des-velamento, só se torna compreensível numa postura em que há Da-sein, esse ente, o único, para quem a Verdade se diz e faz sentido.
Há uma concepção inicial que deve ser superada: a que coloca como categoria mais elevada da compreensão da Arte, a autonomia da obra em relação ao próprio horizonte do humano, ou, como refere Heidegger:
(...) é o simples factum est que quer ser mantido no aberto; isto: que aqui adveio uma eclosão do ente, e que ela advém ainda, precisamente enquanto que este ser-advindo; isto: que uma tal obra é, de preferência a não ser. Este choque: que a obra seja uma obra, e a incessância da sua percussão dão à obra a constância do seu repouso em si mesma. É justamente aí onde o artista, o processo e as circunstâncias da génese da obra permanecem desconhecidas, que este choque, que este quod do ser-criado ressalta o mais puramente da obra .
Se, na origem, o humano se desvanece, a própria instauração da obra no aberto não pode separar-se desse ente que, perante a sua instância, sente o choque e a percussão que dela emana. Instauração no seio do aberto e relevância da questão ontológica? Sem dúvida! Porém, se ser obra de arte, em todas as suas múltiplas formas de manifestação, desde a Pintura à Arquitectura ou da Música à Poesia, é ser um ente mostrante, a proeminência da sua dimensão poética só se torna possível se, aduzido ao momento instaurador inicial do mistério e do enigma, se coloca esse outro em que o Da-sein, na sua qualidade singular de ente que mais insignemente acolhe o Ser, inquire pelo seu sentido. È, apenas, neste sentido que podemos compreender que, para Martim Heidegger, a Arte na sua essência o mesmo é dizer, na sua origem, seja instauração poética da verdade.
Todavia, a essência da Poesia (Dichtung), não se esgota nesse momento originário, qual referente de uma concepção ontológica completamente nova. Antes suscita, e de um modo não menos ressaltante, um novo modelo interpretativo do ente na sua totalidade, uma outra hermenêutica erguida para além dos simples fenómenos, disso que aparece, tão-só, nos domínios estritos da Erlebnis, da experiência-vivida, do simples sentir ou ver dado na, pela, denominada percepção estética, completamente refutada pelo filósofo no que concerne aos domínios da Arte, da Filosofia da Arte que, em nada, com ela compactuam ou se conjugam. Aliás, estaríamos a desvirtuar o pensamento de Heidegger sobre a Arte, se o incluíssemos no âmbito da Estética, tal com teremos, mais á frente,oportunidade de demonstrar.
Sabemos que ao Homem dos “Tempos Modernos” da Técnica, da Ciência e do Cálculo, da ausência do pensamento reflexivo, impregnado na imediatez imprudente do raciocínio, desgarrado da postura metafísica ocidental será impossível “guardar” tanto um hino de Hölderlin como uma ópera de Mozart, um quadro de Van Gogh ou o toque genial do piano de Glen Gould. Não se tendo, em si mesmo, nem nesse outro de si que é a Arte, nem na Verdade que tais obras desdobram, jamais é capaz de as instituir no espaço próprio dessas mundividências essenciais que elas transportam e que, afinal, também são as suas. Assim desenraizadas, as obras não podem mais mostrar o verdadeiro inicial e in-habitual de onde, natural e originariamente, brotaram.
Desenraizar a obra do seu Mundo, do seu espaço originário, eis em que consiste, literalmente, roubar-lhe a poesia: Enquanto posição em obra da verdade, a arte é Poema. E é não apenas a criação, mas também a guarda da obra que é no seu modo próprio, poemática; pois uma obra não permanece real enquanto obra senão nos demitirmos nós mesmos da nossa banalidade ordinária e entrarmos naquilo que a obra abriu, para assim conduzir a nossa essência a ter-se na verdade do ente ,enfatiza o autor.
Manifesta é, agora, a assumpção do homem enquanto ente que, no fulgor da obra, se transporta para uma nova ordem, de todo distinta da que configura a sua existência quotidiana. A obra torna-se uma via, um poro, no qual o homem se en-via para a co-respondência daquilo que a própria obra abriu: a mesma fonte matricial onde se re-conhecem a origem da obra e a essência do homem.
A relevância da obra como mostração poética ganha a sua concretude na conspiração, numa mesma matriz, do homem e da obra, enquanto meios de mostração (cada um a seu modo) da Verdade do ente. Só uma tal co-respondência, que é uma cumplicidade directa, num momento originário, torna possível ao Da-sein o re-conhecimento do que, na obra, concerne a si e ao sentido que confere ao seu existir historial: O projecto verdadeiramente poemático, nota Heidegger, é a abertura daquilo em que o Dasein está, enquanto historial, já arriscado .
Irradiação manifestante de um Mundo que desdobra a sua ordem a partir da relação do Da-sein ao aberto do Ser, mas também ente capaz de possibilitar o total des-garramento do homem em relação ao que lhe é familiar e habitual, transportando-o para um outro aí que não aquele em que tem o costume de estar, para o  originário, onde ele mesmo devém ser-aí, eis como podemos caracterizar a poética da obra de arte.
A tematização heideggeriana sobre a Arte e a Poesia não acolhe a possibilidade do que poderíamos chamar de uma hermenêutica criativa, privilegiante de um  estético. O choque que provoca a existência mesma da obra poética não é desencadeado pelo viso desta que, pela sua força, poderia provocar prazer ou outra qualquer emoção, tradicionalmente considerada como estética.
Não é, de facto, aí que reside a verdade da experiência estética, sendo esta negada se assumida numa dimensão que exclusivamente a reconduza à . Se não é dessa aproximação sensível à obra que provém o poder desgarrante e -tico desta, não deixa o filósofo de conceber uma certa disponibilidade receptiva que poderíamos assemelhar a um real acto de escuta, numa ressonância que aproxima a poética da obra a essa outra, de todas a mais mostrante, residente no poder nominativo da Palavra.
A postura do Da-sein perante a obra e o combate que nela se trava entre clareira e retraimento é um estar co-respondendo ao que na obra silenciosamente se diz. Não propriamente porque a obra “fale”, embora ela sempre nos “fale” de algum modo, mas porque o homem lhe acolhe o Apelo, poeticamente, e, tão-só, enquanto habitante da Terra que ela e por ela instala. Porém, não o apelo do ente-obra em si mesmo, mas do que nele se oferece, ou seja: o brotar longínquo do ente que a obra de arte dá a ver privilegiadamente, mesmo que não de uma forma “claramente vista”.
Detentor do poder da palavra, qual meio conivente do ser de cada ente, o homem é, perante a obra, desenraizado da marca quotidiana do ente, para, numa espécie de nostalgia, sentir a dor que lhe provoca a proximidade desse longínquo a presentificar: o Ser que o ser-obra, enquanto tal, lhe revela.
Querer e saber, eis as características do homem como ente disponível para a escuta da obra nessa sua qualidade instância em que o Ser apela na sua verdade e na sua essência originária: Querer é, com toda a sobriedade, o pôr em liberdade que possibilita ir para lá de si mesmo em existindo e em se expondo à abertura do ente tal como esta se manifesta na obra. (...) A salvaguarda da obra é, enquanto saber, a calma e lúcida instância na e-normidade da verdade advindo na obra .
A obra de arte poética é, nesta conformidade, o lugar em que se potencia o acto de transcensão do humano em relação ao familiar e ao habitual, na persecução de uma verdade mais primeira. Conceder a própria possibilidade de excedência em relação à sua vida interior, na via do horizonte em que o homem co-responde mais ao seu ser, à verdade, eis a dádiva principal que a obra poética concede ao Da-sein.
A instauração da Verdade como começo e a Arte como Poesia, é a tese a que dedicaremos, mais especialmente, a nossa atenção, por ser esta é o cerne de toda a filosofia da arte preconizada pelo autor. Latentemente presente no corpus filosófico heideggeriano, torna-se manifesta, em particular, desde A origem da obra de arte, onde toda esta problemática se inicia e tematiza explicitamente.
Correlativamente, urge tornar visível a peculiar concepção heideggeriana de Poesia, principal ponto de enfoque deste estudo, a partir da questão da origem ou “proveniência essencial” da obra arte, tal como o filósofo gosto de dizer, tomada no seu sentido mais geral.
Conhecendo Heidegger, jamais poderemos conceber a Poesia como um errante inventar do que quer que seja, ou como um oscilar permanente e perpetuante da mera representação e imaginação no irreal. Esta Arte da Palavra, por excelência, essência essencial (o pleonasmo é propositado), fundante, só pode ser pensada enquanto projecto clarificante que se desdobra na des-ocultação; só deve ser perspectivada na qualidade de um modo peculiar do projecto clarificador da Verdade, e, mais adequadamente ainda, como a obra suprema da Linguagem.
Também, naturalmente, como o lugar privilegiado da instalação da Geviert, “quadratura” – o topos originário onde se patenteia a relação intrínseca entre o mortal e o divino, os homens e os deuses ,conceito em derredor do qual gravita o posicionamento onto-artístico do autor, nessa sua genial capacidade de pensador do Sentido do Ser que se mostra pela Linguagem. O estudo da Poesia é, em Martin Heidegger, inseparável do estudo da Linguagem, esse outro tema vivamente presente desde o fenomenológico/ontológico ao artístico propriamente dito, que, a limite, se fundem em derredor da “Questão Ser” (die Seinfrage), onde todas as incursões do seu pensamento radicam.
Pensar a Linguagem ou, mais particularmente como nos demandam as palavras deste peregrino dos “caminhos do campo” , a essência da Linguagem, sempre, na sua relação com a essência da Poesia, torna-se absolutamente imperativo neste passo da nossa investigação.
Numa primeira abordagem, constatamos que o conceito heideggeriano de Linguagem não é sinónimo de uma certa forma de expressão oral e escrita do que importa comunicar; do que transporta apenas, em palavras e fases, o patente e o latente visado como tal. Mas, do que nomeia, pela primeira, vez o ente, sendo este nomear o que trás o ente à palavra e ao aparecer.
Heidegger apresenta-nos uma concepção completamente sui generis, ao determinar a Linguagem como um dom específico do Da-sein, que é dizer projectante, sendo este, por sua vez, primacialmente, Poesia.
Clarificar esta expressão, dizer projectante, é imprescindível para compreendermos a noção de Poesia, tal como o filósofo a apresenta nas suas três linhas essenciais:
1. A fábula da des-ocultação do ente;
2. A fábula do Mundo e da Terra e do espaço de jogo do seu combate;
3. O lugar de toda a proximidade e afastamento dos deuses.
Este dizer projectante prepara o dizível, fazendo, ao mesmo tempo, advir o indizível do Mundo. Por ele comungam, em simultâneo, para um povo histórico, a sua essência e a sua pertença à história do Mundo.
Por esta tríplice via, compreendemos porque é que a obra de arte, ao abrir o Mundo e ao fazer assomar a Terra, instaura-se, ela-mesma, num espaço de combate traçado pela a intimidade da co-pertença dos combatentes, na plena harmonia dos contrários, já anunciada por Heraclito.
É este o espaço sagrado e consagrado dos deuses, onde se encontra, entre estes e os homens, o artista e, mais particularmente, o Poeta, o obrante da Poesia (Dichtung), justamente definida como a arte da palavra pela qual se celebra a essência da própria Arte; precisamente determinada como a Arte inaugural, entre todas as artes, pelo seu nomear primogénito e fundante, pela sua proximidade com o sagrado. E, ainda, de um modo não menos capital, pela sua consagração e salvaguarda da Terra, pela sua dimensão essencialmente historial que transporta, em concomitância, a voz de um Povo e a voz do Deus, encarnadas na voz do Poeta, que as torna audíveis.

Isabel Roset (continua)
In «Projecto de tese de doutoramento - Sobre "A rigem da obra de arte" em Martin Heidegger: os domínios da Poesia eo canto  dos poetas"