domingo, 26 de junho de 2011

Palestra
DE «O QUE É A ARTE?» A «QUANDO É ARTE?» ARTE E SIMBOLIZAÇÃO EM NELSON GOODMAN, por Isabel Rosete

Na "Fiarte" - "Feira Internacinal de Artes Plásticas - 2011", Coimbra

Não obstante os progressos tecidos pela subjectividade moderna e institucionalizados pelo chamado Mundo-da-Arte, defrontamo-nos hoje com alguns sistemas estéticos, com certas reflexões nos domínios da filosofia da arte, cuja abrangência ainda não atingiu o ponto fulcral que lhes permitisse colocar a questão estética prioritária proposta por Nelson Goodman em Modos de Fazer Mundos: Quando é arte?

Esta deve substituir essoutra, puramente ontológica e essencialista, considera o autor, que pergunta, debalde, O que é a arte?, em torno da qual moldámos, durante séculos, o nosso modo ocidental de pensar e de perspectivar a Arte, o artista e as obras de arte. Parte da dificuldade que gira em derredor desta polémica tecitura reside, amiúde, em colocar a questão errada, em não conseguir reconhecer que uma coisa pode funcionar como obra de arte, em certos momentos ou contextos, e não noutros. Nos casos mais cruciais onde esta controvérsia se instala, a questão que deve ser colocada, não é Quais os objectos que são (permanentemente) obras de arte?, mas aquela que inquire, Quando é que um objecto é uma obra de arte?

Embora estas representem dois modos distintos de formular o problema central da Estética contemporânea, essa que pergunta O que é a arte?, tem-nos impedido de aceder à compreensão adequada dos fenómenos artísticos mais recentes, naturalmente revolucionadores do pensar, dos modos de ser e da Arte se dar, pela sua novidade, diferença, especificidade e irredutibilidade.

Certas obras de hoje chocam-nos, por vezes, porque nos transportam para além da vulgaridade, para os domínios do in-habitual, sempre que transcendem o nosso relacionamento familiar com as coisas, sempre que se mostram fora do alcance da visão artística tradicional e basicamente figurativa, a partir da qual educámos o nossa visão ou a nossa escuta. Porém, não deixam de nos interpelar, mesmo que sejam conotadas com as categorias estéticas do feio, do horrendo, do incompreensível, mesmo que desviemos o olhar, cerremos os ouvidos ou tornemos o tacto insensível.

Defrontamo-nos, quotidianamente, com fenómenos artísticos ditos “duvidosos”, “bizarros”, “controversos” e “inadmissíveis” para muitos, artistas e espectadores, que agitam e põem em causa os costumes e as convenções pré-estabelecidas, filtradas pela lente convencionalista e, quiçá, saudosista da Cultura institucionalizada, imperativamente condicionadora das características pelas quais formamos a nossa imagem do Mundo pela Arte.

Mudanças radicais foram impostas pela era industrial, pelo desenvolvimento frenético da técnica e da tecnologia. E grande parte delas, de natureza artisticamente provocatória. Obras de vários autores, particularmente desde o aparecimento de Marcel Duchamp, têm sido um certo quebra-cabeças para artistas e historiadores de arte. Continuam, ainda hoje, a apresentarem-se como um enigma irresolúvel para o grande público e para certos artistas, de tal modo que são consideradas como simples objectos triviais, jamais passíveis de serem denominados de “obras de arte”.

Todavia, para Goodman, o enigma facilmente se desfaz: A minha resposta é que exactamente como um objecto pode ser um símbolo – por exemplo, uma amostra – em certos momentos e em certas circunstâncias e não noutras, assim um objecto pode ser uma obra de arte em certos momentos e não noutros. Na realidade, exactamente por funcionar, e enquanto funcionar, de determinado modo como um símbolo, um objecto torna-se uma obra de arte. A pedra normalmente não é nenhuma obra de arte enquanto está na entrada da garagem, mas pode ser tal quando exposta num museu de arte. Na entrada da garagem, ela não realiza habitualmente nenhuma função simbólica. No museu, ela exemplifica algumas das suas propriedades – propriedades de forma, cor, textura, etc. O abrir e fechar do buraco funciona como uma obra enquanto a nossa atenção está dirigida para isso, enquanto símbolo exemplificativo. Por outro lado, uma pintura de Rembrandt pode cessar de se apresentar como uma obra de arte quando usada para substituir uma janela quebrada ou quando usada como coberta.

A título de exemplo e tendo em consideração a tese do autor que defende a intersecção umbilical entre Arte e simbolização pensemos em (Porquê não espirrar Rose Sélavy?) , “ready-made” criado por Marcel Duchamp, em 1921, por solicitação de Katherine Dreier que lhe havia encomendado uma obra de arte para oferecer à sua irmã, Dorothea Dreier de imediato devolvido por não cumprir, do ponto de vista instituído, nem uma função estética, nem uma função artística.



Pergunta-se: Que objecto é este ao qual o autor atribuiu um título tão inusitado para uma “pretensa” obra de arte: “Porquê não espirrar Rose Sélavy?”. Responder-se-ia, de uma forma espontânea: Vemos, tão-só, um amontoado de cubos de mármore, que podem parecer pedaços de açúcar, um termómetro e um osso de choco dentro de uma velha gaiola rectangular destinada a guardar pássaros.

A obra não foi um sucesso. Não foram muitas as pessoas que a contemplaram. Aquelas que a observaram consideram que era de difícil compreensão, como tantos outros “objectos” do género, embora, ao mesmo tempo, demasiado “estranha” e surpreendente para não reter em si mesma uma significação específica pela qual, eventualmente, o artista tenha pretendido transmitir uma determinada mensagem, que não conseguiam decifrar num único golpe de olho.

Tratava-se de uma espécie de “objecto de transição” que insuflou o espírito dadaísta nos pulmões do surrealismo que começava, na altura, a evoluir em múltiplas e diferenciadas formas.

Apesar de ter sido integrada, em 1936, numa exposição surrealista, não deixou de ser colocada numa vitrina ao lado e com o mesmo estatuto de fetiches da Papuásia e dos modelos de demonstração matemática do “Instituto Científico de Poincaré”.

Neste contexto, colocam-se, obviamente, na minha perspectiva, 3 questões fundamentais:

1. A semelhança com estes modelos pretenderia incitar o espectador a retirar o objecto do contexto artístico?

2. Ou a conferir-lhe um outro estatuto que não o de obra de arte ou de objecto estético?

3. Saberemos onde colocar esta espécie de objectos que os artistas contemporâneos nos apresentam como sendo obras de arte, mas que para o espectador, e para alguns críticos e historiadores de arte, se apresentam com um estatuto assaz ambíguo?

O dilema é apenas este: até ao final do século XIX sabíamos identificar, com alguma facilidade, um dado objecto como obra de arte, na medica em que as distinções entre as obras de arte, propriamente ditas, e os outros objectos que assim não eram considerados, estavam “explicitamente” estabelecidas pelas qualidades das obras, no que respeita aos meios empregues, à estrutura formal e ao assunto. De um modo geral, sabíamos que a pintura e a escultura eram sempre representações de objectos ou de acontecimentos efectivamente presentes na vida dos povos.

O que designamos, hoje, por “arte abstracta”, “arte conceptual”, “ready-made” ou “happennings”, não tem mais lugar na concepção “tradicional” de artisticidade pautada por regras bem definidas, absolutamente inflexíveis, normalmente excluidoras do diferente, do aparentemente “estranho” ou “excêntrico”, do completamente novo, do “desenquadrado” das bitolas do modo ocidental costumeiro de perspectivar a Arte. Neste meio, constata Goodman, não encontramos mais respostas para as novas formas de criação do espírito humano que exigem, por sua vez, outras formas de avaliação, à luz de outras categorias estéticas que não o belo, o sublime ou o harmonioso.

Esta mudança de postura, esta alteração dos hábitos do ver, do sentir ou do escutar as obras arte, tem causado grandes embaraços à generalidade das doutrinas estéticas contemporâneas que enveredam, desesperadamente, pelo caminho de uma definição, mais ou menos consensual, de Arte e de obra de arte.

Ainda não estamos esteticamente despertos, repara Goodman, para a elasticidade frequente dos objectos comuns que, ora podem ou não “funcionar”, como obras de arte. A dimensão simbólica que encerram é tão ou mais efémera que a vida dos seus criadores ou daqueles que, simplesmente os expõem, tal como o seu estar artístico.

Interessa averiguar, sobretudo, quando determinado objecto, num dado momento, ocupa o estatuto de obra de arte, e simultaneamente quando, num outro, o perde.

Quer os artistas que vestiram a roupagem desta nova vaga, quer os impulsionadores mais provocatórios dos novos movimentos estéticos, deparam-se com o embaraço da questão da definibilidade da Arte. Apresentam algumas dificuldades em explicar as suas criações, face ao modo objectivo de compreensão que o grande público exige.

Goodman acompanhou, de perto, toda esta panóplia em constante metamorfose. Elaborou a sua visão artística do mundo à luz de uma elucidação bem clara desta problemática – da qual o texto “Quando é Arte?” é o testemunho mais evidente – lógica e filosoficamente fundada numa argumentação de fina sensibilidade estética, da qual resultam teses explicitamente justificativas dos novos modos emergentes de criação artística, bem como de um conjunto de pistas que nos permitem compreender o estatuto mutável dos objectos estéticos.

Marcel Duchamp manifesta, igualmente, esse tipo de embaraço, quando lhe pedem para esclarecer ou, pelo menos, para alvitrar uma interpretação plausível para esse objecto “esquisito” que apelidou de “Porquê não espirrar Rose Sélavy?”. As suas palavras são simples. O seu discurso, puramente descritivo. Pouco acrescenta ao que podemos observar directamente e à descrição que atrás apresentámos: «Esta pequena gaiola está cheia de cubos de açúcar... mas os cubos de açúcar são feitos de mármore, quando se lhe pega, fica-se surpreendido pelo peso inesperado. O termómetro destina-se a registar a temperatura do mármore.»

Esta obra, assim descrita pelo seu autor, é apenas um dos casos paradigmáticos, entre outros que poderíamos apresentar, com idênticas dificuldades hermenêuticas. Permite-nos, no entanto, compreender e justificar, de uma forma ainda mais evidente, a problemática central que envolve Goodman em “Quando é Arte?”.

O que nos resta acrescentar às declarações de Duchamp, de molde a que possamos fundamentar, exemplificativamente, o paradigma filosófico-estético goodmaniano em análise?

“Porquê não espirrar Rose Sélavy?”, com as suas sugestões de peso – o mármore – promessa de doçura – os falsos cubos de açúcar – falta de calor – termómetro – eventualmente poesia – o canto do pássaro, exemplificado pelo osso de choco – voo aprisionado – o osso de choco dentro da gaiola – e arte – o cubismo e a utilização do mármore – parece conter uma mensagem para as promotoras da encomenda: as irmãs Dreier. O título irreverente é, seguramente, uma proposta.

Este e outros exemplos que podemos recolher da história da arte mostram a complexidade desta tipologia artística, ao mesmo tempo que tornam possível a compreensão do triângulo estético que a delimita.

A teoria funcional de Goodman ou, se preferirmos, a teoria do funcionamento simbólico das obras de arte, parte precisamente de uma reflexão sobre o estatuto dos “ready-made”, dos “happennings”, dos “objects trouvés” e da “arte conceptual”, amiúde geradores de tensões assaz conflituosas, que colocam em questão o estatuto da obra de arte e a noção de artisticidade.

Torna-se necessário ultrapassar as questões de ambiguidade colocadas pelos “objectos ansiosos”, quer dizer, por uma espécie de criações da arte contemporânea que conduzem à formulação de juízos incertos, assaz duvidosos, no que concerne ao facto de tal objecto ser ou não ser classificado como uma obra de arte.

Por extensão, importa reflectir sobre a natureza da Arte, de molde a evitar que se caia numa das duas posições extremistas que se têm desenvolvido a propósito:

1. “Tudo é Arte”, defendida pelos que se situam numa postura que prima pela ausência de critérios artísticos determinados;

2. «O que é a arte?», questão colocada por todas as correntes estéticas em demanda do conjunto de características dadas como absolutas e definitivas, como determinantes do conjunto de objectos que, efectivamente, podem ser considerados como obras de arte.

Nada pode ser determinado ad eternum (é a tese que defendo), dado como absoluto ou definitivo, seja qual for o domínio cognitivo em que nos situemos. Nada pode ser concebido como imutável, mas sempre sujeito às mais inesperadas metamorfoses.

Aliás, a História da Arte é percorrida por alterações sucessivas, e até mesmo sistemáticas, de paradigmas estéticos completamente diferenciados. Ao longo das épocas, muitos foram os choques a que assistimos (o mesmo diremos relativamente à história do conhecimento humano em geral), pelo proliferamento das múltiplas formas, sempre novas, da Arte se dar.

Os “objectos ansiosos” – que apareceram pela primeira vez com Duchamp, em 1917, aquando da apresentação de “La Fontaine” (“Fonte”) , à Sociedade de artistas independentes – contam-se entre as aventuras da arte, entre as experiências limite do mundo da arte, até meados do século XX. E se não foram importantes para a Arte foram-no, seguramente, para a Estética.




Goodman capta, apresenta e legitima o essencial desta problemática. Renova, em 1968, a questão prioritária da caracterização da Arte, ao infirmar, por um lado, a necessidade de uma definição de Arte e, ao afirmar, por outro, que a natureza da Arte deve ser procurada na simbolização.

Em Languages of Art (1968), a função simbólica da arte é dada por adquirida. O objectivo do autor consiste em analisar, detalhadamente e de um modo absolutamente rigoroso, os diferentes sistemas de símbolos e processos de simbolização, pelos quais essa função se manifesta.

Todavia, é apenas em 1977, com o texto When is Art?, que a caracterização da Arte, pela simbolização, se torna um problema central para o filósofo, porque:

1. Goodman não acredita nem aceita que exista uma forma única de experiência estética, que permita substituir o essencialismo artístico pelo essencialismo estético;

2. Procede à seguinte deslocação: são os processos simbólicos que se encontram implicados na experiência estética que caracterizam a Arte.

Como qualquer um dos teóricos da indefinibilidade da arte, Goodman compartilha a crítica das teorias essencialistas e, em particular, a ideia de que a questão “O que é a Arte?” não deve ser nem a inicial, nem a prioritária que a estética ou a filosofia da arte devam colocar. Não aceita que a dificuldade em caracterizar a Arte decorra do facto desta ser concebida como um “conceito aberto”, nem que uma teoria estética sistemática constitua uma impossibilidade lógica.

O posicionamento estético de Goodman tem em comum, com as teorias institucionais, a tese central por estas reiterada, a saber: a caracterização da arte não deve ser procurada nas propriedades intrínsecas dos objectos que são obras de arte, mas nas suas propriedades relacionais. No entanto, e contrariamente a estas, jamais admite que tal caracterização tenha de ser dependente da apreciação crítica. Postas estas considerações, torna-se evidente que a questão estética inicial deve ser: “Quando é Arte?”.

A resposta que nos apresenta é clara, simples e rigorosa, pondo fim ou contornando, de certo modo à questão da ambiguidade despoletada por todas essas situações de colisão estética e artística que, particularmente, depois de Goodman, já não nos abalam de sobremaneira, porque: «é devido ao facto de funcionar como símbolo de uma certa maneira que um objecto se torna, “quando” assim “funciona”, uma obra de arte» . Os termos a destacar são: “funcionar” e «símbolo». A expressão a enfatizar é: “funcionar como um símbolo de uma certa maneira”.

Em suma, Nelson Goodman fundamenta a natureza da Arte e das obras de arte, na simbolização. Mas, para que esta tese seja aceitável, é necessário demonstrar que:

1. Todas as obras de arte desempenham uma qualquer função simbólica;

2. Existem características específicas a esse funcionamento relativamente a outros modos de funcionamento simbólico, tais como os da ciência, da filosofia, da religião, ou os das várias práticas da vida quotidiana.

A caracterização da Arte em termos de simbolização, tal como Goodman a concebe, traz vantagens no âmbito das incursões estético-hermenêuticas requeridas por todos os casos controversos da arte contemporânea, ao mesmo tempo que nos permite aceder a uma explicação não só mais aceitável, mas, sobretudo, mais credível teoricamente, afastando-nos da ambiguidade conceptual, sempre que se trata de classificar tal ou tal objecto como obra de arte, pelos seguintes argumentos:

1. Simbolizar é algo que pode acontecer a qualquer objecto ou acontecimento, uma vez que ser símbolo não depende das propriedades intrínsecas dos objectos;

2. Como a simbolização não é consignada a um estatuto fixo, pode ser adquirida ou perdida por qualquer objecto em função do contexto ou das circunstâncias que lhe são adstritas. Não temos de colocar a questão da simbolização ao mesmo nível daquela que inquire pela essência das obras de arte;

3. Dois objectos perfeitamente idênticos podem funcionar, um e não outro, como símbolos estéticos .
Isabel Rosete
Fevereiro de 2011